Sobre cidades, maravilhosas ou não.

[Aproveitando que a partir de 01 de janeiro de 2021 Belém será novamente governada por um governo popular, revisito uma crônica de 2015, levemente atualizada, em homenagem a Belém. Na esperança de que tenhamos bons tempos em Breve:]

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Nasci em Belém do Pará, mas vivi muitos anos de minha infância e adolescência na pequena cidade de Igarapé-Miri. Desde pequeno sabia onde havia nascido e as histórias sobre aquele lugar acabaram criando uma aura em torno da cidade e a vontade de um dia voltar.

Pequeno, vivendo em uma cidade do interior da Amazônia, onde o meio de informação mais difundido era a televisão, não sabia exatamente o que era Belém. Confundia coisas, misturava mensagens e ícones disseminados no imaginário sobre as cidades do mundo. Não foi à toa que a primeira vez que fui à capital do Pará, ainda pré-adolescente, acreditava que estava indo visitar, finalmente!, a tão falada “cidade maravilhosa”. Talvez eu confundisse o termo “cidade maravilhosa”, normalmente atribuído ao Rio de Janeiro, com outros termos tradicionalmente associados à Belém, como “cidade das mangueiras”, “cidade morena”, “capital da Amazônia”, etc.

Seja como for, naquela primeira viagem, Belém me remetia a uma “cidade maravilhosa”. A imagem efetiva da cidade não poderia ser diferente daquela expectativa. Encostado no parapeito da lateral de um barco que singrava a baia do Guajará, rumo à metrópole, eu via na imensidão das águas pequenos prédios que aos poucos iam se avolumando, em meio ao céu claro e transparente. Tudo coberto de uma profunda claridade. Lembro como se fosse hoje! Uma claridade daquelas que só são entediadas por quem um dia navegou nas baias que cercam Belém e nos grandes rios da Amazônia. Aquela paisagem, mistura do céu com a imensidão de águas, não sei o motivo, mas tem uma luminosidade muito sua, algo quase indescritível.

Eu via Belém da “janela” de um barco e a mim me parecia, como continua a me parecer quando faço essas viagens, uma “cidade maravilhosa”, cercada de rios e mais rios. Essa foi uma das primeiras imagens que tenho de Belém. A ela, outras se somariam.

Alguns anos depois, quando já morava na capital, no período em que fazia o curso universitário na UFPA, percebi uma outra imagem da cidade que até hoje não esqueço, e que marcou muito minha maneira de entender esse mundo. É uma imagem dupla, na verdade, composta por lama e por asfalto. Asfalto em primeiro lugar.

Logo que cheguei ficava muito tempo perdido em distração olhando como o asfalto das avenidas era bem feito. Um asfalto lisinho, negro, robusto, no qual a água da chuva jorrava e deslizava junto à sarjeta. Lembrava do chão do quintal e das ruas de terra ou de asfalto raso  de Igarapé-Miri. Pouco se sabe, mas há uma ciência que explica as formas como a água adere ou escorre sobre um chão de terra ou um chão de asfalto. Até hoje não sei de que imagem gosto mais, se da água escorrendo no chão de terra dos quintais infantis ou da água que deslizava pelo asfalto quente de Belém nos dias de chuvas torrenciais.

A segunda metade da imagem está obrigatoriamente associada ao asfalto, mas é o seu oposto, é a sua ausência. É a cidade-lama, a cidade alagamento, a cidade margeada, marginal! Ao mesmo tempo em que descobria o asfalto, descobria uma rota que me fazia visualizar Belém pelas suas margens. Todo os dias eu ia para a universidade e meu ônibus, Cremação alguma coisa, circulava praticamente por toda a “Estada Nova”, Av. Barnardo Saião.

Como morava no bairro do Jurunas, nessa época, depois de passar um curto período de menos de um ano no Marco, e ia para a UFPA, que fica no Guamá, meu ônibus fazia uma reta. Para quem não conhece Belém vai aqui uma rápida explicação. A Av. Bernardo Saião é uma estreita rua que segue a margem da cidade na parte sul. Ela acompanha a margem do rio Guamá, porém na maior parte do caminho esse rio não é visto, já que existem milhares de casas, além de empresas, portos, feiras, que ocupam a margem do rio. A rua atravessa a região mais populosa de Belém, bairros de grande riqueza cultural e social, mas também muito pobres, como o Jurunas, a Condor e o Guamá. É literalmente uma rua marginal, em todos os sentidos.

Indo e vindo da universidade, fazia esse caminho olhando uma paisagem que se revelava mais e mais a cada dia. Os detalhes se ampliavam: casinhas de madeira penduradas sobre o canal que segue a avenida; campos de futebol de várzea; bares e bares e mais bares; feiras e portos; crianças correndo atrás de papagaios e pipas, passando pela frente dos carros, serelepes, sem medo; carros e caminhões descarregando nas feiras do Jurunas, no Porto da Palha, indo e vindo apressados; propagandas sonoras automotivas e faixas coloridas penduradas nos postes de iluminação e nos fios elétricos, anunciando as festa de aparelhagem e os bares mais populares daqueles bairros; caixas de som em alto volume na frente de casas, em bares, lojinhas, em biroscas que vendiam peixe frito e açaí; palafitas e mais palafitas penduradas sobre os canais; vielas que desapareciam serpentiando, a partir da avenida, e formavam caminhos labirínticos bairro  adentro; carros de mão puxados por vendedores de frutas, vendedores de coxinha e suco, carroças puxadas por animais levando madeira; indígenas, caboclos, negros e mestiços desembarcado nos portos e chegando na cidade depois de atravessar a baia do Marajó, ou vindos de cidades pequenas próximas a Belém, como Igarapé-Miri, Cametá, Barcarena, Abaetetuba e tantas outras; camelôs e todos os tipos de vendedores de todos os tipos de coisas; e outras infinidades de imagens, cores, sons, cheiros e vida.

Porém o que mais me chamava atenção nessas viagens diárias era ver a cidade, mais uma vez, da margem para o centro. Em determinado espaço da avenida, o ônibus cruzava uma parte grande e descampada, ainda no Jurunas. Lá, sem as casinhas de madeira que ficavam quase tocando nos ônibus, de tão próximas que eram da rua, era possível um olhar mais recuado. A vista partia da avenida, da janela de um coletivo, e rumava para o centro de Belém. A cidade se revelava em camadas. Apesar de estar na periferia eu podia ver quase toda a cidade de lá, pois o horizonte, por algumas minutos, se abria ao observador. Via muitas Beléns.

Via aquela cidade já narrada acima, e outra um pouco mais distante: a cidade de prédios altos. No horizonte, enquanto o ônibus corria, podia confrontar a parte enlameada, alagável e pobre da margem da Barnardo Saião, que se movia rápido, com a parte distante, formada de prédios bonitos que quase não se moviam com o correr do ônibus. Centro e periferia não se comunicavam, pareciam próximos, mas estavam distantes milhares e milhares de quilômetros e milhares e milhares anos. Eram na verdade dois mundos de uma mesma cidade. Uma cidade, que vista em perspectiva, já não parecia tão maravilhosa assim.

A maior parte de minha vida em Belém passei nesta margem. Morei um curto período no Jurunas, depois passei a morar na Terra Firme. Como frequentava a maior universidade de Belém, que ficava na beira do rio Guamá, fiz muitas vezes, também, o percurso à pé, da Terra Firme à UFPA. Via aí a continuação do que seria a Bernardo Saião, já com o nome de Avenida Perimetral. A paisagem era a mesma.

Eu não sabia ainda, mas passaria muitos anos olhando a cidade das margens e tentando entendê-la melhor. Tornei-me um flâneur dessa periferia. Mesmo quando circulava pelo centro de Belém, meu olhar era enraizado nas margens e a partir dela é que passei a ver todo o resto; fossem as maravilhas, fossem as misérias urbanas. 

Carta-Manifesto de Movimentos e Coletivos de Educação Popular com propostas para a política de educação popular em Belém e as celebrações em torno do centenário de Paulo Freire

A eleição de Edmilson Rodrigues (PSOL) e Edilson Moura (PT) para a Prefeitura de Belém, no quadriênio 2021-2024, expressou a força das lutas populares em defesa de um programa de sociedade e de educação transformador, inclusivo, popular e democrático.

Após décadas de descaso com a escola pública e o direito à educação, a vitória da Frente “Belém de Novas Ideias” traz esperança em dias melhores para as cidadãs e os cidadãos de Belém, o que envolve, centralmente, a luta contra a mercantilização do ensino, e a defesa radical dos direitos humanos, da justiça social e ambiental e da educação popular.

A presente Carta-Manifesto, construída coletiva e participativamente por mais de 50 movimentos e coletivos signatários, apresenta aos Poderes Executivo e Legislativo, bem como à sociedade paraense, de forma mais geral, propostas em torno de uma Política de Educação Popular para Belém, além de pautar as celebrações em torno do Centenário de Natalício de Paulo Freire, em 2021.

O ano de 2021 será marcado pelo Centenário de Paulo Freire em todo o mundo. No Brasil, terra natal do nosso Patrono da Educação, centenas de iniciativas estão em andamento para valorização, estudo e implementação das ideias político-pedagógicas progressistas e libertadoras de Paulo Freire. Consideramos que Belém, além de Cidade Educadora, Alfabetizada e Alfabetizadora, Capital da Resistência Amazônica, também pode entrar para a história como Cidade do Esperançar Freireano!

Confira a íntegra da Carta-Manifesto e os coletivos e movimentos signatários neste link:


https://drive.google.com/file/d/1wFQsRRi_loGvH6HCxhVHCdQZPyOfk0G2/view

Leituras compartilhadas… Paulo Freire e o “privilégio” dos opressores.

“Em verdade, instaurada uma situação de violência, de opressão, ela gera toda uma forma de ser e comportar-se nos que estão envolvidos nela. Nos opressores e nos oprimidos. Uns e outros, porque concretamente banhados nesta situação, refletem a opressão que os marca” (Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido, 1970 ).

“Esta violência, como um processo, passa de geração a geração de opressores, que se vão fazendo legatários dela e formando-se no seu clima geral. Este clima cria nos opressores uma consciência fortemente possessiva. Possessiva do mundo e dos homens. Fora da posse direta, concreta, material, do mundo e dos homens, os opressores não se podem entender a si mesmos. Não podem ser. Deles como consciências necrófilas, diria Fromm que, sem esta posse, “perderiam el contacto con el mundo”. Daí que tendam a transformar tudo o que os cerca em objetos de seu domínio. A terra, os bens, a produção, a criação dos homens, os homens mesmos, o tempo em que estão os homens, tudo se reduz a objeto de seu comando” (Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido, 1970 ).

“Por isto é que, para os opressores, o que vale é ter mais e cada vez mais, à custa, inclusive, do ter menos ou do nada ter dos oprimidos. Ser, para eles, é ter e ter como classe que tem (Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido, 1970).

Paulo Freire em 1970, em Pedagogia do Oprimido, já descrevia o processo de posição defensiva do opressor ao perder ou ter seus privilégios ameaçados. E de como o privilégio constitui uma cultura, aquilo que muitos marxistas chamariam de “modo de vida global”, que inclusive afeta também as consciências dos sem privilégios, dos oprimidos.

Afeta a todos, já que é estrutural, como o é o racismo, o machismo, a heteronormatividade excludente, etc. [diriamos hoje].

De fato, há vários elementos interessantes nos três fragmentos de Freire, citados no início deste poste. Vejamos:

  1. Traz consigo uma visão global do mundo, ou o mundo como totalidade. Algo comum em algumas vertentes do marxismo, por exemplo. Modo de vida global, totalidade, dialética entre aspectos culturais e modo de ação, ou a própria práxis que constitui a totalidade da vida social.
  2. Tem uma visão da cultura que se diferencia da tendencia “interpretativa”, digamos, da antropologia cultural. É uma visão antropo (do homem/mulher) como totalidade, não apenas como signo ou linguagem. Importante refletir que Freire escreve este livro antes da voga do giro linguístico ou pós-modernismo.
  3. Por fim, há uma clara sociologização do fenômeno da cultura, por isso podemos pensá-la como ethos ou habitus.

É uma visão verdadeiramente dialética e sofisticada daquilo que hoje muito se dicute como “privilégios”. Mais uma vez Paulo Freire se mostra um autor atual, imprescindível.

A polícia e o “Velho da Havan”

O “Velho da Havan” foi autuado por infringir as regras de controle da propagação do coronavírus na cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul.

No aeroporto da cidade, sem máscara, cercados por policiais, foi chamado a assinar a autuação, mas teve muito tempo para gravar e transmitir ao vivo o acontecimento; o que é, na verdade, um direito seu [de gravar a ação de agentes públicos].

Mas, apesar de ter esse direito de gravar a ação da polícia, chama a atenção a liberdade que teve para deixar os policiais esperando vários e vários minutos enquanto gesticula e falava livremente olhando para as “câmaras”.

Parecia que estava em seu próprio reality show e a PM seguia todas as ordens do “apresentador” do programa:

– Ele dava as costas para os policiais, falava com as câmeras, girava pra lá e pra cá, ria e fazia chacota da ação policial, respondia aos “telespectadores” aparentemente ao vivo, falava minutos seguidos enquanto os PMs esperavam sua assinatura com os papeis na mão. O “Velho” chegou até a colocar o dedo em riste no roto de um dos policiais.

Os PMs só faltaram falar “Seu Dotô, assina aqui por favor”!

Que polícia “paciente”, não é!

Mas atenção: se você for pobre, preto, indígena e periférico não repita isso em sua quebrada. Esse tipo de docilidade e subserviência a polícia só tem com “Velhos da Havan” ou moradores de condomínios de luxo!

Na periferia é policial pobre contra população pobre, ambos vitimados pelo mesmo sistema que os brutaliza e os mata!

Enquanto ao “Velho da Havan”, não se preocupem, na mesma hora ele voltou pra sua casa em total segurança e conforto… em seu jatinho particular!

PS. 1: Aqui não se trata de defender que a polícia agisse com violência ou reprimisse os direitos de qualquer cidadão (incluindo aí o sujeito abjeto conhecido por “Velho da Havan”). Trata-se de uma constatação obvia, uma denúncia, de que em sociedades de classes, na qual o Estado representa os interesses dos poderosos, a polícia tende a agir de forma subserviente a esses mesmos poderosos. Diferente da forma que age frente à população marginalizada, que tem cotidianamente seus direitos desrespeitados e é vítima da violência física das forças repressivas do Estado.

PS. 2: Importante reconhecer e denunciar que os policiais, sobretudo os policiais de baixa patente, são também vítimas desse sistema. Despreparados e mal pagos, humilhados por uma elite militar formada quase sempre por pessoas de classes “superiores”, moradores da periferia, jogados como bucha de canhão na “guerra às drogas” e brutalizados por uma ideologia punitivista, acabam, sem o perceber, sendo os “capitães do mato” que fazem o serviço de controle dos pobres e extermínio dos que não se conformam.

Belém, a expectativa e a esperança.

Em relação às eleições municipais no Brasil, ainda estamos tentando compreender várias coisas, que não me arrisco a responder, mas vou citá-las:

– Se realmente o PT perdeu força em termos permanentes ou se, associado a isso, o lulismo ainda é a bola da vez, num contexto de aparecimento/consolidação de novas lideranças “médias” como Boulos e Manuela…

 – Se o PSOL a médio e longo prazo vai substituir o PT, dentro de novos grupos de tendência mais à esquerda…

– Ou ainda, se o Bolsonaro vai virar suco e o bolsonarismo vai se pulverizar mais cedo ou mais tarde na tendência de fortalecimento dos partidos e grupos de centro e centro direita…

O caso de Belém do Pará pode ser interessante para pensarmos mais em complexidades do que em respostas acabadas.

– Do ponto de vista das classes sociais distribuídas no espaço urbano, como mostraram Saint-Clair Trindade Jr. e Estêvão José Barbosa, ficou mais ou menos claro que os setores populares não aceitaram o discurso elitista e de defesa descarada do mercado feitas pelo candidato bolsonarista de fato, o Delegado Federal Eguchi (Patriotas).

A cidade periférica, a hipermargem, das “baixadas”, sobretudo os bairros de periferia mais antiga como Guamá, Jurunas, Terra Firme e Tapanã/Icoaraci etc. tenderam a votar no candidato do PSOL, Edmilson Rodrigues. E os bairros de centro, tais como Marco, Nazaré, Umarizal etc. tenderam a votar no candidato de extrema-direita.

Porém, essa divisão mostra apenas uma tendência geral, que carece de maior aprofundamento analítico, como deixam evidente os próprios autores que citei acima.

Se entrarmos nesses bairros da periferia de Belém, onde habita a maior parte da população, o que provavelmente veremos é uma disputa acentuada, com muitas variáveis que teremos que refletir por muito tempo ainda. Dessas, quero colocar algumas rápidas questões:

1. Todos os bairros de periferia têm forte presença evangélica, tanto onde a esquerda ganhou quanto nas áreas que perdeu. Na Terra Firme, por exemplo, onde Edmilson ganhou, há quase uma igreja neopentecostal em cada esquina.

Não podemos partir do princípio apriorístico que diz que os evangélicos votam necessariamente na direita. Muitos evangélicos, inclusive, declararam voto em Edmilson nessas eleições.

Porém, eis a questão: as igrejas evangélicas são hoje na periferia de Belém o que foram antes os clubes de mães, as comunidades de base, os centros comunitários, os sindicatos, os espaços de sociabilidade de jovens, territórios onde o sentimento comunitário (de pertencimento) mantém-se vivo em bairros de extrema desigualdade e violência. Claro que elas não são as únicas entidades a desempenharem esse papel, mas o desempenham cada vez mais, concorrendo com outras formas de sociabilidade popular e com os movimentos sociais “tradicionais”.

Essas igrejas são, portanto, o próprio “movimento do social” nesses bairros, num contexto de crise de representatividade política, desemprego e subemprego, violência urbana e ataque ideológico sistemático a qualquer tradição política que se associe à “esquerda” etc. 

Apesar da importância política crescente desse setor religioso, ele continua sendo um completo desconhecido para a maior parte da militância de esquerda.

2. Toda a periferia de Belém vive a utopia da redenção por via do mercado e do consumo.

Essa utopia foi e está sendo disseminada pelos meios de comunicação de massa a décadas e nos últimos anos tem se fortalecido pela ideia do empreendedorismo popular ou neoliberalismo popular. A ideia de que qualquer pessoa que “trabalhe duro”, que seja um “empreendedor” (em oposição aos “vagabundos” ou aqueles que “dependem do Estado”) vai se dar bem na vida.

Conversei muito com ubers e trabalhadores informais durante as eleições e posso dizer que esse é um discurso corrente e muito forte.

Não é à toa que, mesmo que o delegado tenha perdido a eleição, muitas pessoas da periferia de Belém votaram no seu projeto de administração “empresarial” da cidade. Não foi uma vitória folgada e nem podemos dizer que mostra uma tendência consolidada até 2022 (em se tratando estritamente a termos eleitorais).

3. As novas sociabilidades populares do mundo virtual, configuradas nas comunidades de bairros, de times de futebol, de família, etc. no WhatsApp ou Facebook.

Muito militantes que adentraram aos grupos de bairro nas redes sociais, para ganhar votos nas eleições, perceberam que lá existe um mundo à parte (fora da bolha). Discursos de ódio e soluções de força têm ampla aceitação nas culturas populares periféricas (“bandido bom é bandido morto”, “delegado X ladrão”, “esquerdopatas” e “vagabundos” etc.).

É possível sugerir que esses discurso de ódio e de soluções de força atuais encontrem eco nas antigas estruturas de “justiça popular”, de linchamentos públicos, de fazer a justiça pelas próprias mãos, em resolver logo as coisas sem esperar uma justiça que nunca chega aos pobres, etc.

Essas estruturas se fortalecem reciprocamente em uma sociedade despedaçada, sem saídas coletivas, desconfiada dos políticos, com pessoas que vivem na rua, na informalidade, de transporte público precário, vitimada pela pandemia, sem perspectivas utópicas para além de um “Deus” vingativo e justiceiro e da utopia de ascensão individual por via mercado etc. 

No que diz respeito a esta questão, é importante que se diga que se trata não apenas “dos meios”, mas “das mediações”. Os “novos” meios apenas amplificam e aceleram a circulação de visões de mundo conservadoras antigas, somadas às ideologias de força, discursos religiosos e discursos de ódio, todos estes trepidados e sacudidos pela crise global que gera medo, desesperança e desespero universalmente.

4. A crise é maior que os ganhos meramente eleitorais locais.

Parece haver um consenso nas análises da esquerda sobre os motivos, digamos, fundamentais da adesão às soluções de força e violência para resolver os problemas sociais dentro do capitalismo:

– Os projetos de força, geralmente auto caracterizados como outsiders, fascistas ou neofascistas, surgem da crise generalizada, fundamentalmente a crise econômica aguda (a crise do próprio sistema) associada a crises na representação política burguesa liberal. Contemporaneamente essas crises ainda se complexificam pela sua proporção civilizatória e ambiental, e também pela existência de “novos” e “velozes” meios de informação, como a internet, as redes sociais etc.

Fato é que na crise do próprio capitalismo os capitalistas não querem perder a margem de lucro e por isso propõem como solução a superexploração do trabalho. Soma-se a isso o fato de os governos, sobretudo os periféricos, também não quererem/poderem manter certos benefícios sociais (aquelas migalhas que o sistema deixa cair sobre os mais pobres), pressionados pelos próprios capitalistas.

O resultado da crise é mais crise: cada um por si e o Deus-Mercado contra todos.

Daí aparece um Trump ou Bolsonaro da vida, diz que vai fazer e acontecer e na verdade beneficia mais ainda os de cima, criando mais e mais desesperança.

Esse é o pano de fundo estrutural, no qual Belém está imersa, como periferia da periferia, como margem da margem. Inclusive margem da margem frente às geopolíticas nacionais e o colonialismo interno, inclusive o colonialismo interno das esquerdas sudestinas difusoras de projetos de nação que quase nunca consideram as especificidades locais e regionais (da Amazônia, por exemplo).

E qual é a alternativa em termos estruturais que a esquerda apresenta? Qual a alternativa em termos de novo comunitarismo e economia moral e justiça popular que a esquerda deu e dá a essa ampla parcela da população das margens de Belém e do Brasil?

Certamente os anos de burocratização e parlamentarização das lutas da esquerda não ajudaram em nada para mudar esse cenário. A esquerda parlamentar e eleitoral é um Outro declarado do povo das periferias. Nesse aspecto, diga-se de passagem, Edmilson Rodrigues é realmente uma exceção.

A esquerda, grosso modo, perdeu espaço no “movimento do social”, e esse espaço foi ocupado por aquilo que descrevi acima, dentre outras coisas.

Como nada surge fora de uma materialidade, de uma concretude em termos amplos, e a concretude não se limita (unicamente) a eleições, mas a ser/estar junto nas luta sociais, a eleição de Edmilson (que é um alívio dentro do caos generalizado)  mostra apenas que estamos muito atrasados em ser uma alternativa para as pessoas. Inclusive e fundamentalmente por isso significar uma instância eleitoral dentro do espaço do Estado burguês.

Fato é que enquanto houver crise (e ela vai permanecer) haverá o risco de que os sujeitos e sujeiras frustrados, fraturados e atomizados busquem soluções de força, sejas elas um bolsonarismo com Bolsonaro ou um bolsonarismo sem ele.

Nesse sentido Belém será importante e emblemática às lutas seguintes não só pelo fato de que terá uma administração municipal de esquerda a partir de 2021 (num contexto totalmente desfavorável em termos nacionais), mas também porque esta cidade terá que comprovar na prática de seus administradores e militantes e dos movimentos sociais se é ou não possível, a curto, médio e/ou longo prazo (?), estabelecer conexões para além do eleitoral com a vida prática dos trabalhadores e trabalhadoras da periferia de Belém.

Se será viável e possível amortecer/atrasar a crise e o desespero das pessoas evitando, mesmo que temporariamente, a tentação às soluções de força em escala local. Ou se é possível à esquerda (com mas também para além do governo executivo municipal) reconectar com esse mundo das margens. O mundo dos sujeitos e sujeitas atomizados, fragmentados, fraturados, temerosos mas que, apesar disso tudo, lançou um fagulha de esperança.

A crise continua. O povo está faminto, desesperançado e desesperado!

E quem tem fome e desespero, tem pressa!

Manifesto das Historiadoras e Historiadores com Edmilson Rodrigues 50

Quase sempre historiadoras e historiadores, em seu trabalho cotidiano de pesquisa, ensino e ou/extensão, seguem a máxima que diz que seu ofício é o de “lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer”.

Em outra escala, mas de modo parecido, há aqueles e aquelas que estabelecem como tarefa da sua profissão a escrita da História a contrapelo, de modo a interromper o “cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão”.

Há momentos em que o tempo se acelera e aqueles que buscam narrar o passado são levados em um redemoinho de acontecimentos que lhes exige, em todos os níveis, educar/escrever/narrar para transformar ou, em outros termos, seguir aquele outro conselho, feito originalmente para os filósofos (mas que podemos tomar emprestado), de que temos “interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”.

Transformar é, também, não deixar a barbárie, o obscurantismo e a intolerância se tornarem a moeda corrente.

É não se omitir diante da multiplicação de filhos periféricos, de fronteira, do velho e tacanho fascismo de ontem e de hoje!

É tomar posição objetiva frente a uma disputa eleitoral onde o projeto de uma cidade para as pessoas, democrática, popular, de novas ideias enfrenta o projeto do ódio, da indústria de fake news, da velha política travestida de “patriotismo” e discursos moralistas.

Edmilson Rodrigues 50 representa hoje, como já demostrou em suas administrações do passado, a possibilidade de uma cidade com projeto de saúde, saneamento básico e geração de renda para todos e todas; incentivo às artes, à cultura e à educação; transporte público gratuito e de qualidade; planejamento urbano e cidade para pessoas. Representa, em resumo, a Belém democrática e popular.

A Belém Mairi!

A Belém Cabana!

A Belém Afro!

A Belém das Mulheres!

A Belém de oportunidade para as crianças e juventude!

A Belém de todas as Cores e todos os Amores!

A Belém Ver-O-Peso!

A Belém carimbó, samba, capoeira e boi-bumbá!

A Belém Povo!

A Belém gente! Feita de gente, para as pessoas, com amor!

Por tudo isso nós, historiadoras e historiadores, de todas as áreas, da educação e da pesquisa acadêmica, declaramos nosso apoio à candidatura dos professores Edmilson Rodrigues e Edilson Moura para a prefeitura de Belém!

O tempo urge e “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”: levantemo-nos para este movimento de defesa de uma cidade democrática, popular e para as pessoas!

Assinam este manifesto:

Adriana Coimbra (UEPA)

Adriane dos Prazeres (UEPA)

Adriano Sidrim (SEDUC)

Agenor Sarraf (UFPA)

Airton dos Reis Pereira (UEPA)

Aldrin Moura de Figueiredo (UFPA)

Alessandra Mafra (UEPA)

Alickson Lopes (SEDUC/FUNBOSQUE)

Alik Nascimento de Araújo (SEDUC/FIBRA)

Amanda Brito Paracampo

Amilson Pinheiro (UEPA)

Ana Lídia Nauar Pantoja (UEPA)

Anna Maria Linhares (UFPA)

Anderlei Marinho (SEDUC)

Andréa Pastana (SEDUC/UEPA)

Antonia Brioso (EA/UFPA)

Antonio Mauricio Dias da Costa (UFPA)

Aro Dinei Gaia ( SEDUC/SOME)

Caio Carneiro (SEDUC)

Camila Frota Costa

Carlos Maurício Santana da Silva (SEDUC)

Caroline Barroso (SEDUC)

Cleodir da Conceição Moraes (EA/UFPA)

Cristina Cancela (UFPA)

Daniel Souza Barroso (EA/UFPA)

Daniel Tavares (SEDUC/SEMEC)

Edgar Cabral (SEDUC)

Edilza Joana de Oliveira Fontes (UFPA)

Edilson Mateus Costa da Silva  (SEDUC)

Edivania Santos Alves (UFPA)

Elane Rodrigues Gomes (EA/UFPA)

Eliana Ramos (UFPA)

Elias Brito (SEDUC)

Fábia Martins (SEDUC)

Fábio Pessôa (Unifesspa)

Fernando Arthur de Freitas Neves (UFPA)

Filipe  Monteiro (UFPA)

Franciane Lacerda (UFPA)

Francivaldo Nunes (UFPA)

Iane Maria da Silva Batista (UFPA)

Jaime Cuéllar Velarde (Seduc)

Jair Mauro Diniz Neris (Unifesspa)

Jairo de Jesus Nascimento da Silva (UEPA)

Jane Felipe Beltrão (UFPA)

Jerusa Barros Miranda (UEPA)

José do Espírito Santo Dias Júnior (UFPA)

José Maia Bezerra Neto (UFPA)

Karl Arenz (UFPA)

Kleber Leite (SEDUC)

Laisa Epifanio Lopes (UFPI)

Leila Mourão (UFPA)

Leirson Azevedo (SEDUC)

Leopoldo Júnior (UEPA)

Letícia Pereira Barriga (IFAP)

Luana Sullivan Bagarrão Guedes

Luiza Amador (SEDUC)

Maíra Oliveira Maia (SEDUC/UNAMA)

Marcelo Capela (SEDUC)

Marcelo Martins

Márcio Couto Henrique (UFPA)

Márcio Neco

Marcos Alexandre (UEPA)

Marcos Carvalho (UEPA/SEDUC)

Marcos Oliveira (SEDUC)

Maria Martins (SEDUC)

Maria de Nazaré Sarges (UFPA)

Mauro Coelho (UFPA)

Odilene Santos (SEDUC)

Odozina  Braga (UEPA)

Otaviano Vieira Jr. (UFPA)

Rafael Chambouleyron (UFPA)

Rafael Ferreira

Raoni Raiol

Roberta Tavares (UFPA)

Rogério Silva

Pere Petit (UFPA)

Renato Aloizio de Oliveira Gimenes (UEPA)

Renato Pinheiro Sinimbú (UFPA)

Samuel Ribeiro Mendonça

Sônia Maria Rezende Santos (SEDUC)

Stela Pojuci Ferreira de Morais (UEPA)

Taissa Tavernard (UEPA)

Telma Saraiva (CCIAí)

Telmo Renato (UEPA)

Tony Leão da Costa (UEPA)

Vânia Maria Ferreira da Silva (SEDUC)

Wanessa Carla Rodrigues Cardoso (SEDUC)

William Gaia (UFPA)

Vitor da Mata (UEPA)

Venize Rodrigues (UEPA)

*Historiadoras e historiadores que desejam assinar o manifesto podem fazê-lo pelo endereço a seguir*:

https://www.peticao.online/manifesto_das_historiadoras_e_historiadores_com_edmilson_rodrigues_50

Breves passagens freireanas (e marxistas).

Paulo Freire é daquele tipo de pensador universal e profundo. Lê-lo é de uma experiência de profunda beleza e amorosidade. De uma “boniteza”, melhor dizendo, para ficar mais freireano…

Cada pessoa lê Freire de uma maneira, obviamente.

A minha maneira é lê-lo devaneantemente, despretensiosamente, meio até que distraidamente.  

Talvez essa minha maneira seja, exatamente, a minha forma particular de ler o texto lendo o mundo e ler o mundo mediado pelo texto – exatamente como Freire inspira.

Para mim, certos autores (coloco aqui também o Marx) ao serem lidos, mesmo um fragmento, às vezes exigem que fique refletindo por muitas horas seguidas, e até por dias.

Não sou produtivista!

Aliás, foda-se o produtivismo!

Mas, na verdade esse poste nem era para eu falar muito. A intenção era apenas citar uma, duas, ou três passagens freireanas. E de brinde uma passagem marxista.

No futuro breve, aqui neste espaço, colocarei de forma mais sistemática, sem perder o devaneamento, outras impressões freireanas.

Fragmento 1:

“Existir ultrapassa viver porque é mais do que estar no mundo. É estar nele e com ele. E é essa capacidade ou possibilidade de ligação comunicativa do existente com o mundo objetivo, contida na própria etimologia da palavra, que incorpora ao existir o sentido de criticidade que não há no simples viver. Transcender, discernir, dialogar (comunicar e participar) são exclusividades do existir. O existir é individual, contudo só se realiza em relação com outros existires” (p. 40 – nota 2 – do livro Educação como prática da liberdade, de 1967).

Fragmento 2:

“No ato de discernir, porque existe e não só vive, se acha a raiz, por outro lado, da descoberta de sua temporalidade, que ele começa a fazer precisamente quando, varando o tempo, de certa forma então unidimensional, atinge o ontem, reconhece o hoje e descobre o amanhã. Na história de sua cultura terá sido o do tempo — o da dimensionalidade do tempo — um dos seus primeiros discernimentos. (…) O homem existe — existere — no tempo. Está dentro. Está fora. Herda. Incorpora. Modifica. Porque não está preso a um tempo reduzido a um hoje permanente que o esmaga, emerge dele. Banha-se nele. Temporaliza-se” (p. 40-41 – do livro Educação como prática da liberdade, de 1967.).

Fragmentos 3 (Marx e Freire):

“A doutrina materialista de que os homens são produtos das circunstâncias e da educação, de que homens modificados são, portanto, produto de outras circunstâncias e de uma educação modificada, esquece que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens e que o próprio educador tem de ser educado” (Marx em Teses sobre Feuerbach (III tese) de 1845, com pequenas modificações feitas por Engels em 1888).

“É que não haveria ação humana se não houvesse uma realidade objetiva, um mundo como ‘não eu’ do homem, capaz de desafiá-lo; como também não haveria ação humana se o homem não fosse um ‘projeto’, um mais além de si, capaz de capitar a sua realidade, de conhecê-la para transformá-la” (Paulo Freire em Pedagogia do Oprimido, refletindo a partir de Lenin, Lukács e, particularmente da III tese sobre Feuerbach de Marx, citada acima).

Hoje é sexta feira 13, inspiremo-nos, devaneemos sobre a boniteza e a potência!

Pós-verdade: desesperança, desespero e fascismo.

1. A pós-verdade é fruto do medo, da desesperança e do desespero e esses, por sua vez, nascem do próprio capitalismo que gera permanentemente a extrema desigualdade e a desagregação da vida social.

A desesperança e o desespero são o pano de fundo para o afloramento da pós-verdade; ou da mentira como fenômeno massivo da desesperança e do oportunismo e cinismo dos poderosos, se preferirem.

2. O que vem a ser a desesperança e o desespero?

A desesperança pode ser definida como “ação ou efeito de desesperar; desesperar-se; desesperação. Condição excessiva de desânimo em que uma pessoa se sente sem capacidade para realizar alguma coisa; desalento”.[1] Ou seja, segundo a definição encontrada nos dicionários usuais, a desesperança é uma condição/sentimento/estado de negativação da ação humana.

A desesperança é a negação da esperança, é a negação da possibilidade da espera.  

A condição de espera, o esperar, por si só, já pode ser vista como uma condição de relativa passividade, de alguém que espera alguma coisa, por exemplo. Diríamos que o esperar é um estado de passividade, porém, ainda é uma “passividade esperançosa”. Quando se espera, muitas vezes o esperado ocorre ou pelo menos pode, potencialmente, ocorrer. Nem sempre esperamos parados! Esperamos como potência.

A des-esperança (o posto da esperança, a negação da espera) nem isso mais é.

Não é mais uma possibilidade, nem é uma potência. A desesperança nos parece a priori muito mais passiva: é a desistência da esperança, a desistência da espera, é a desistência da potência.

Porém, desesperança pode ser vista também como positivação, como ação, não apenas como condição de passividade. Assim o é quando um dos desdobramentos de seus significados nos dicionários correntes aparece como “excesso de irritação; raiva ou cólera” ou ainda como “o que faz com que alguém se desespere”.[2]

Desesperançar, enquanto domínio do desespero, assim, equivale a irritar-se, colerificar-se, desesperar-se, arrancar-se lhe os próprios cabelos, colerificar-se contra todo um estado de coisas que está ai: a demora na resolução dos problemas, as instituições “ineficientes”, o desemprego, a carestia, os “impostos” sem fim, a violência urbana, os ônibus lotados, as recorrentes “promessas falsas” dos políticos, a demora no atendimento médico, as frustrações resultantes da falência das pessoas em exercer sua cidadania, a frustração da busca mítica na “elevação” das pessoas à condição de consumidores, o racismo, a homofobia, o machismo, o preconceito de classe e a superexploração do trabalho, etc.

O desespero pode ser a revolta contra tudo isso! E nesse sentido ele é não-passivo, é ação, uma ação revoltosa e potencialmente destruidora.

Contudo, para a maior parte das pessoas não há uma clareza das condições históricas que geraram a desesperança e o desespero. Tem-se apenas a sensação de que tudo está ruim, de que a “barra está pesada demais” e a resolução dos problemas lenta demais; daí que as pessoas perdem a esperança da resolução e ao mesmo tempo em que se desesperam, colerificam-se, explodem, gritam, esmurram, exigem uma solução urgente, imediata, uma solução de força, sem “blá blá blá”, uma resolução no aqui e agora!

3. Nesse momento em que a desesperança se consolida em desespero temos umas das condições primárias para a pós-verdade prosperar: a urgência na busca de fórmulas rápidas e mágicas (independentemente de serem ou não factíveis) possibilita a proliferação da mentira, de meias verdades, de mitologias, de distopias, de fake news, de fundamentalismos, como fenômeno massivo da desesperança e do desespero. Não se trata mais de uma mentira individual com efeito individual, mas de um fenômeno de massas, social, coletivo, de impacto político geral.

A negação da realidade objetiva, da concretude, da história ou, pelo menos, a fé cega e irrefletida na distopia, na irracionalidade, na pós-verdade, ou na simples e pura mentira, só ocorrem com tanta força e com adesão massiva em contexto de urgência, de desespero; quando não há tempo para se duvidar das soluções, quando não há tempo para respirar e alguém apresenta ao sujeito/sujeita desesperançado/desesperado uma solução aparentemente simples e rápida, um mito, uma solução mágica, quase sempre mediada pela força bruta. Surge alguém que diz que vai resolver todos os problemas, custe o que custar!

4. Outro lado da moeda é o oportunismo e o cinismo dos poderosos, ou dos representantes dos poderosos, que nesse momento se aproveitam para amplificar e difundir o caos, amplificar o medo, alimentar o delírio, a distopia, de modo a garantirem-se como os “salvadores”, aqueles que se colocam como “os de fora”, os que “não participavam desse jogo sujo” da política e que, portanto, viriam pra resolver, sem “blá blá blá”, na hora, se preciso pela força, pela violência, por fora da ordem, com milícias, como messias ou heróis.

Assim foi que Bolsonaro, um político velho e velhaco, com mais de 20 anos de política sem apresentar nenhum projeto para o país, pertencendo ao “baixo clero”, acostumado às maracutaias da política periférica e de submundo do Rio de Janeiro e das maracutaias de Brasília, apareceu com “salvador” e como “novidade”. E ficou livre e solto para cortar direitos dos trabalhadores, ampliar o desemprego, vender à preço de banana as riquezas nacionais, devastar o meio ambiente, bajular potências estrangeiras etc.  

Da mesma forma nos EUA um empresário mega rico, acostumado com as maracutaias do grande capital, acostumado a explorar trabalhadores de forma transacional e lucrar com falências, sonegação de impostos, perito na especulação financeira de todo tipo, apareceu como salvador da pátria, como aquele que iria colocar aquele país na sua antiga condição de “grandeza”.

Falei acima de oportunismo e cinismo dos poderosos. O oportunismo parece já estar bastante claro nesse senso de oportunidades que as elites têm de aproveitar a onda para se manter no poder, seja com Trumps e Bolsonaros seja com “democracias” mais tradicionais.

Sobre o cinismo uma coisa deve ser dita:

O cínico é aquele que acreditar ter, e tem por algum tempo, certeza de seu domínio, ao ponto de, não só oprimir, mas festejar sobre os corpos de suas vítimas. Tornando um festival, um espetáculo ainda mais grotesco, aquele cortejo triunfal de que nos fala Walter Benjamin:

“Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão”.[3]

O cinismo é a inescrupulosa certeza da impunidade e da vitória, do andar de cima!

Importante que se diga que esses cínicos, como Bolsonaro ou Trump, não são produtos de fake news e não são as fake news que os construiu e os sustenta, eles são fruto da própria dinâmica estrutural do sistema, gerador de desigualdades brutais, desamparo, desespero e, por consequência, busca de soluções de força, protofascista, neofascista, fascistas.  

A desesperança, o desespero, a falta de perspectivas do povo, dão a base social para a pós-verdade, pois a verdade da dureza da realidade não serve mais a quem não tem tempo, a quem está em pânico, desesperado, desesperançado, destroçado pelas engrenagens do sistema capitalista.

5. E aí entra um último ponto:

Na base de tudo isso, do ponto de vista estrutural, é o próprio sistema capitalista que gera o caos estrutural e a saída eventual para soluções de força (o fascismo do passado e do presente), na qual a pós-verdade é apenas um sintoma.

O capitalismo sistematicamente destrói os laços de solidariedade humana, as condições mínimas de bem estar social. Amplia sistematicamente o poder dos ricos e esmaga e destrói a vida dos pobres em todo o mundo. Cria as condições de extrema desigualdade, de riqueza absurda de uns poucos, pouquíssimos na verdade, e a miséria da maioria. Destrói formas de vida, destrói biomas, polui campos e cidades, gera conflitos sociais de todos os tipos, precariza o trabalho (uberiza) e retira direitos por onde se expande.

E do ponto de vista ideológico, difunde por todos os lados o mito do empreendedorismo, a cultura do consumismo, a socialização da vida pelo mercado, o hiper individualismo ególatra, o fetichismo da imagem, a busca permanente da performance fetichista no mundo virtual.

Todos esses elementos criam um desejo permanente de ser pela via do parecer ser/ter. O problema é que quando a realidade da vida, a condição do ser de fato, é revelada, para os consumidores frustrados, para aqueles que não conseguiram ser o que queriam ser, nem conseguiram parecer ser, já que são os miseráveis do mundo, vem a grande frustração e o caos se renova, num ciclo infinito: depressão, pânico, desespero, angústia, desamparo coletivo, ressentimento, atomização, desilusão, desalento, rancor, ódio, morte. Caos, medo, fascismo!

Em resumo: o capitalismo é a própria crise; o sistema engendra a extrema desigualdade e frustração e o medo; o medo, a desesperança e o desespero geram o fascismo com modo de vida global.

No fascismo os poderosos se mantêm no poder, sem máscaras, por via simples e pura da violência, e da manipulação, da pós-verdade, do desejo de controle absoluto dos oprimidos, cinicamente pela farsa, brutalmente pela força, pelo controle da vida e da morte.

O capitalismo é a estrutura própria do medo e da morte que se impõe e nos é imposto.  

O caos e o medo são globais e nossa única saída é criar estruturas de esperança e vidas de esperança, de forma concretas, objetiva, reais. E para tal só há uma saída: destruir a máquina estruturante da desigualdade, do medo, da desesperança, do desespero e da morte! Os modelos estão aí. A teoria já temos de sobra. Não nos faltam manuais da rebeldia. Ainda não conseguimos a adesão, o re-ligare, o enraizamento, e por isso a não verdade ainda é mais útil ao povo (em desesperança) do que as verdades, ou melhor, do que as dúvidas, os questionamentos, a interrogação rebelde que ponha abaixo tudo isso!


[1] Dicio – dicionário online de português. Disponível em: https://www.dicio.com.br/desespero/

[2] Ibidem.

[3] Benjamin, Walter. “As Teses sobre o Conceito de História”. In: Obras Escolhidas, Vol. 1,. São Paulo, Brasiliense, 1985. p. 222-232.

Carta a um defunto amigo

Caro amigo morto que hora jaz em sua marmórea morada, hoje senti deveras tua falta.

Senti falta de nossos tempos de meninice, donde nos preocupávamos apenas com o horário que a campainha da escola tocaria, na hora do recreio, e poderíamos correr livremente pelos corredores cheios de crianças. Lembrei que tínhamos a habilidade de poucos de chegar primeiro à fila de distribuição da merenda. Tu sempre bem mais rápido que eu, é verdade, muitas vezes foste o primeiro a apanhar o lanche.

Fiquei saudoso e quase chorei dia desses ao me lembrar de nossa adolescência. Junto com a rapaziada, todos com 14, 15, 16 anos de idade, íamos a bando (todo mundo andava em bandos nesta época) para os igarapés da cidade. Nossa condução eram as bicicletas que sofriam como nossas molecagens pueris.

Fiquei horas lembrando essas coisas.

Lembrei ainda do dia que deixei minha casa em Igarapé-Miri, no interior do estado, pra vir morar em Belém… Lembrei que nesta época a casa estava em reformas, e eu, com meus 16 ou 17 anos de idade, olhei pela última vez o quintal que tantas vezes brinquei. Lembro como se fosse hoje este dia.

A parte de trás da casa estava desmontada, a madeira deitada ao chão, às 18 horas o sol já se despedia e as arvores grandes do quintal davam um ar de filme (aqueles filmes de terror donde o bosque guarda sempre mais coisas do que podemos pensar…). Foi neste momento que olhei pela última vez meu quintal e iniciei minha jornada para Belém, a capital, pra conhecer outras pessoas e outras experiências que eu não tinha. Depois fiz outras tantas viagens (mas essas são pra outro momento)…

Hoje, meu caro e defunto amigo, olho para trás e vejo que perdi muita coisa, inclusive a ti. Fico pensando como será a frialdade da terra onde habitas, imagino qual a relação que estabeleceste e ainda estabeleces com os vermes que te roem a carne e te lambem os ossos, o que pensas da outrora dura, e agora podre, madeira que te abriga, tens vontade de sair, de voltar a viver…? São coisas que não sei e não saberei tão cedo.

Quanto a mim, mudei muito. Nosso tempo de infância e adolescência ficou pra trás. Meus horizontes mudaram bastante e, como não pretendo morrer tão cedo – já que tenho, como todos têm, uma relação de amor e ódio com a vida -, sinto que não te verei tão breve, por isso mantenho contato por esta correspondência. Espero que possas responder em um sonho, qualquer dia desses.

E por falar em sonho, inerte amigo, tive um sonho estranho dia desses e não consigo tirá-lo de minha cabeça. Sonhei que estava dormindo (no sonho eu estava dormindo) e acordava com uma estranha coceira no dedo indicador da mão direita. Acordava e coçava o dedo, como a coceira não passava, olhava pra ver o que ocorria. Pra minha surpresa via uma nódoa verde na ponta do dedo, na região anterior à unha e neste mancha surgia um pequeno gramado, como um gramado de campo de futebol, com uma grama bem pequenina, mas de raiz profunda e de fina ramagem. Acordei-me de súbito (acordei de verdade, fora do sonho) e o dedo indicador ainda coçava, assim como doía um pouco. Não consegui dormir mais a noite toda e todos os dias medito se terá de fato um gramado nascendo de minha carne.

Temo esta possibilidade!

Caro amigo, não sei o que isso significa. Nunca fui dado a adivinhar sonhos. Talvez tu daí do mundo dos mortos possas me dizer algo sobre isso algum dia desses. De resto, vou levando a vida. Convivendo e falando com pessoas vivas todos os dias e tendo sonhos estranhos todas as noites.

Por fim, espero que estejas bem em teu funéreo descanso, pois que aqui na terra as coisas andam como sempre, às vezes melhores, às vezes piores, às vezes quente, às vezes frio, etc.

Despeço-me por hora, não tenho muito mais o que te dizer, não hoje. Nós falaremos em outros sonhos ou em outras cartas.

Até logo.