Moro, o pequeno; Witzel, o breve.

Ao Moro, o pequeno, se soma agora o Witzel, o breve. Dois produtos do neofascismo à brasileira, instalado originalmente nas instâncias do Judiciário.

Para o bem da nação, eles – e outros que anda nao caíram – devem ocupar o lugar que a História reserva a esse tipo de sujeito.

E não é o lugar do esquecimento, não!

Por não termos feito nosso acerto de contas com o passado é que sujeitos como Bolsonaro, um “filhote da ditadura” como diria Brizola, está onde está.

Não devemos nos esquecer dessa gente ordinária! O lugar deles é o lugar da memória, a memória vergonhosa dos sujeitos infames!

Sejamos honestos, existe “cristofobia” sim!

Pois, vejamos:

  • Pastores e líderes religiosos que apoiam um presidente fascista, acusado de envolvimento com esquema de corrupção (rachadinha), laranjas e milícias. Que conhecidamente defendeu e defende a tortura e a ditadura;
  • Pastores e líderes religiosos que apoiam um governo que acaba com os direitos que protegiam os mais carentes, que reduz salários, que sucateira educação e saúde públicas e coloca o país em chamas para enriquecer os poderosos, latifundiários e garimpos ilegais em terras indígenas e florestas;
  • Pastores e líderes religiosos que pregam o ódio às minorias e cultuam o dinheiro e o poder, explorando a fé e as parcas moedas dos miseráveis e desesperançados;
  • Pastores e líderes religiosos que colocaram em rico a saúde e vida de seus próprios fiéis abrindo suas igrejas em plena pandemia, negando a ciência e praticando o charlatanismo;
  • E inúmeros cristãos intolerantes, fundamentalistas, acobertadores de pedófilos, acobertadores de violências contra mulheres, deputados evangélicos que legislam contra o povo e esbanjam o dinheiro público com suas dentaduras de milhares de reais, corruptos, disseminadores de discurso de ódio, de fake news…
  • A lista é longa…

Cristo, hoje, se oporia a esses vendilhões e canalhas e certamente seria crucificado de novo, sob o grito enfurecido da multidão:

“Bandido bom é bandido morto!”.

Eis aí a cristofobia!

Fome, precarização… e as esquerdas?

“Insegurança alimentar” ou, simplesmente, fome voltou a fazer parte da realidade de muitos brasileiros de 2017 para cá, segundo pesquisa do IBGE. Ao mesmo tempo, o pantanal e a amazônia seguem sendo incendiados de propósito pelo latifúndio (o AGRO) para virar pasto…

A esquerda corretamente tenta resistir em um front importante, o eleitoral, mas quase toda ela, da esquerda da esquerda à “esquerda” reformista, sofre de orfandade das massas, são “vanguardas” sem povo, com pouco ou nenhum enraizamento efetivo nos novos sujeitos precarizados e uberizados.

Esse enraizamento ou o surgimento de novas lideranças e movimentos das próprias massas precarizadas ainda não se fez ou não se consolidou. Precisa ocorrer e, na verdade, vai ocorrer mais cedo ou mais tarde.

A crise e o caos prometem durar ainda alguns anos, pois derivam de uma crise estrutural do próprio capitalismo.

O novo utópico precisa ser gestado em meio ao entulho e a ruína de movimentos envelhecidos, burocratizados, desenraizados; de teorias sofisticadas mas sem práxis (com intelectuais orgânicos do Lattes); de fetichismos de performances de “choque” sem diálogo com os sujeitos precarizados; de “lacres” excessivamente espetaculosos e virtuais; de pulsões revolucionárias juvenis sem a medida das forças; de voluntarismos revolucionários de fala mofada; de posturas políticas que entendem o eleitoral como luta social com um fim em si mesmo; da fragmentação e falta de diálogo entre identitarismos que falam de intersecção mas ainda não a praticam, ou pelo menos esquecem da parte da “classe” dessa intersecção; da dependência ao Estado e ao paternalismo de esquerda, etc.

Tá foda! Mas não estou sendo pessimista não. É da crise que virá o novo.

PS.: há exceções a esse quadro, obviamente, mas aqui estou tratando da regra.

Sobre a rebelião das mulheres do PT e a questão da paridade de gênero nas eleições.

I

A legítima rebelião das mulheres do PT (e também não petistas) contra a escolha de uma chapa para prefeitura de Belém formada apenas por homens na coligação de esquerda veio colocar pólvora sobre o tema que se encontrava latente.

As mulheres não aceitam que os argumentos da “estratégia política” e da “não crítica aberta” (para não prejudicar a campanha) sejam utilizados num tema que deveria ter sido superado a muito tempo: o fato óbvio de que uma chapa de esquerda, que se propõe ser de fato democrática e transformadora, deveria dar o exemplo (muitos exemplos na verdade), a começar pelo exemplo da paridade de gênero nas candidaturas.

Desde a consolidação da chapa, sem a presença feminina, inúmeros comentários dispersos têm surgido nas redes sociais e agora um vídeo com militantes mulheres petistas veio à baila: exigindo a paridade.

Compartilho com todos e todas o vídeo para que o debate provocado por essas mulheres seja ampliado. Concordando com elas, considero que é dever de todos os cidadãos e cidadãs que desejam uma cidade mais justa e democrática fazerem a reflexão sobre esse tema. Considero ainda que esse debate inaugura o 1º Turno da eleição que se aproxima, não podemos não participar dessa discussão.

Digo mais: abre-se um importante espaço para que um debate de democracia direta seja realizado agora, tendo esse tema como um motivador imediato. A candidatura de Edmilson Rodrigues, o Psol, o PT e os candidatos a vereadores/as devem se posicionar sobre essa questão, pois ela não é uma questão marginal ou menor, como bem colocam todas as mulheres do vídeo. Acompanho a fala dessas mulheres, por isso compartilho e apoio suas posições!

Por último, digo que é dever dos/das intelectuais, homens e mulheres, se manifestarem e cobrarem posições da chapa sobre esse tema. Sobretudo aqueles que cotidianamente amplificam de seus espaços de reflexão o tema do feminismo, nas universidades, nos cursos on-line, nos blogs e que participaram e compartilharam os atos de rua protagonizados pelas mulheres nos últimos anos.

A melhor reflexão é a prática. E a prática é agora!

Minha posição é: todo apoio à rebelião das mulheres do PT!

Texto originalmente publicado no facebook, aqui.

NÓS MULHERES PETISTAS NÃO NOS CALAMOS!!!#NãoMeCalo#nãomecalo

Publicado por Telma Saraiva em Quarta-feira, 16 de setembro de 2020

II

Nós, individual e coletivamente, temos responsabilidade com as demandas de nosso tempo histórico. O tempo, o espírito do tempo, a materialidade do tempo (em termos “materialistas” propriamente ditos), o sopro da mudança, assim o exigem.

Não por existir uma entidade metafísica ou cósmica chamada “tempo”, onisciente e onipresente, que está preocupada com o que pensamos e agimos individual e coletivamente, mas apenas porque em certas épocas existe uma vontade imperiosa de mudança, carregada pelas estruturas de sentimento daquilo que é o mais avançado do que dispomos enquanto projeto civilizatório coletivo.

Essa é a “vanguarda” como mentalidade, sensibilidade e práxis de cada geração. O melhor que possuímos como projeto de humanidade, mesmo que, inclusive, não se efetive como tal e seja derrubado, mais cedo ou mais tarde, pelo conservadorismo de sempre.

Hoje o feminismo é parte essencial dessa “vanguarda”, em suas vertentes variadas e complexas. Compõe um elemento central dessa vanguarda de aspirações civilizatórias superiores.

Daí que partidos políticos, pessoas, organizações, entidades, movimentos que não buscam incorporar lições mínimas expressas nas demandas do feminismo, tais como a “paridade de gênero” em qualquer proposta política coletiva, estão nadando contra a maré dos tempos.

O dever de casa é nossa obrigação coletiva e necessária; pois da direita e dos fascistas não esperamos sequer um “bom dia”!

PS. 1: Não falo pelas mulheres por motivos óbvios (sendo redundante), falo por mim apenas, opinando sobre um tema geral da eleição de Belém do Pará. Trata-se aqui apenas de acompanhar a posição legítima já colocada por muitas mulheres sobre esse tema. Sendo “pró”, sabendo de minha posição de apoio e não de “vanguarda” sobre esse assunto.

PS. 2: Também não se trata do nome A ou B. Edilson Moura é um quadro importante, educador de longa trajetória, homem negro, com experiência política, intelectual, advindo das lutas comunitárias, honesto, íntegro e merece todo nosso respeito e apoio. Mas me parece que o tema aqui é o da necessidade de acompanharmos o tempo histórico e a justiça. A presença de uma mulher seria a coisa certa a se fazer! Sem mais… mas também sem menos!

Cursos on-line.

Tô impressionado com a quantidade de cursos on-line que têm surgido nos últimos, sei lá, 30 dias.

Eu, por exemplo, estou fazendo 5 ao mesmo tempo:

– Malabares remoto eco-orgânco tântrico (às segundas);

– Afetos, afetividades, afetações, anfetaminas e cartografias amorosas do Woodstock tardio ou “por que todos os grandes astros do rock’n’roll morrem aos 23?…” (às terças);

– Do Lattes ao Tik Tok, novas sociabilidades do intelectual crítico-orgânico pós-fordista (às quartas);

– Capas de LPs e cerveja artesanal, faça você mesmo… (às quintas);

– Reflexões pandêmicas de Žižek e Boaventura em tempo real, explicadas por coaches decoloniais (às sextas).

No final de semana eu paro um pouco pra me drogar. Afinal, ninguém é de ferro, né gente!

Adoecimento, utopia, revolução!

Recentemente estava assistindo a uma live sobre a relação entre psicologia e marxismo e fiquei bastante impressionado com uma coisa dita pelo palestrante: ele dizia que a psicologia ou psiquiatria tem um papel importante para, digamos, ajudar na redução dos sofrimentos individuais mais imediatos mas, de fato, essa ação é limitada, paliativa, se pensarmos em algo como uma “redenção” coletiva, a “emancipação humana”, uma cura global, um conforto das angustias e sofrimentos humanos em geral. Psicologia e psiquiatria não têm algo como uma solução efetiva para o mal estar generalizado da pós-modernidade, neoliberal e capitalista. Isso, para ele, só se resolveria com uma transformação radical da sociedade, uma revolução etc. Bom, não estou colocando aqui a fala literal do palestrante, mas mais aquilo que interpretei e lembro.

Como leigo, não psicólogo ou psiquiatra, nem profissional da saúde em geral, concordo com essa tese. É como se disséssemos que, efetivamente, a única saída, inclusive para aquilo que parece um adoecimento individual (com causas íntimas, do mundo do inconsciente, derivadas da trajetória de vida pessoal etc.), é uma mudança do paradigma civilizatório geral, uma sociedade pós-capitalista de modo geral, com a reconstrução/construção/reelaboração de novas formas de socialização, comunidade, laços humanos, solidariedade, etc.

A um tempo atrás comentava em outra postagem de como as pessoas estão adoecendo com a barra pesada dos tempos em que vivemos, particularmente aqueles que estão, digamos, na linha de frente do enfrentamento do sistema.

A pressão normal do capitalismo sobre as pessoas já é uma barra pesada demais: individualismo extremo, egolatria fetichista, consumismo e competição como modelo civilizatório, poder sem limite dos ricos, impotência e frustração dos pobres etc. Frustração essa que se torna o pano de fundo ideal para a adesão das pessoas a discursos de ódio, a soluções por via de “mitos” autoritários, criminalização da pobreza e brutalização da vida.

Soma-se a isso as peculiaridades do capitalismo no Brasil: combinações estruturais e de longa duração de racismo, patriarcado, classismo, colonialismo interno e externo; mais a conjuntura de um governo genocida, uma pandemia que já vitimou cerca de 130 mil pessoas, desemprego, crise econômica, uma esquerda bastante desgastada e muito pouco enraizada nas coletividades periféricas, retrocessos em vários setores, crescimento do obscurantismo, etc.

Por fim ainda há as crises existências individuas e familiares, propriamente ditas. Os históricos familiares e individuas de nossas neuras.

Tudo isso parece ter criado um clima propício ao adoecimento coletivo, particularmente daqueles que foram ou vão para o enfrentamento desse estado de coisas. Obviamente o impacto é mais pesado para aqueles que estão na linha de frente da luta!

Daí tantos sequelamentos: alguns abandonando o barco esbravejando contra suas antigas utopias, outros se fechando no sectarismo político pouco estratégico, gastando a munição no famoso “fogo amigo” e muitos, literalmente, entrando em quadros depressivos, pânico, ansiedade e outros quadros psíquicos agudos.

Tudo isso muitas vezes amplificado ao extremo pela hiper exposição (às vezes pedidos de socorro literais) nas redes sociais, que funcionam quase sempre como remédios temporários e ineficientes para as angústias existências individuais e coletivas.

É necessário que esse tema entre no debate objetivo dos militantes, ativista e organizações políticas de esquerda: esse adoecimento psíquico coletivo/individual tem sido também um elemento importante da crise global.

Temos que nos cuidar, reaprender a saber cuidar e reconstruir utopias coletivas que garantam a sobrevivência, a luta e a transformação de um mundo atualmente marcado por angústias e autodestruição. Precisamos de horizonte utópico, novo ou antigo, atualizado, tanto faz, mas que tenha entre seus elementos estruturantes um humanismo radical e não genérico, um mínimo denominador comum utópico àqueles que querem um mundo melhor, exatamente aquilo que unifica todos os grupos à esquerda.

Fato é que, do jeito que as coisas estão, o capitalismo pode nos matar, mas só depois de nos enlouquecer. Parece que nossa única saída é transformar as angústias individuais em lutas coletivas.

Por enquanto, parece que ainda temos um longo caminho para isso. Não sou psicólogo, mas sou historiador e talvez nesse campo possa falar com uma pouco mais de coragem: o tempo não para e a histórica nunca acaba! Que a crise possibilite a retomada da luta em termos coletivos, com novas utopias pós-capitalismo, revolucionárias, independente do nome que dermos a elas!

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PS.: É importante que se ressalte que quando se diz que a psicologia e a psiquiatria têm seus limites, tal fato deve ser lido da seguinte forma: a máquina de trucidar pessoas, esmagar coletividades, despedaçar sensibilidades comunitárias e inflar fetichismo e hiper individualismos egocêntricos e consumistas, chamada capitalismo, não será detida por “tratamentos” individualizados. Muito de nossas angústias individuais/coletivas só serão superadas pela refundação revolucionária de nossas comunidades/sociedades/civilizações, uma vez que o capitalismo nos joga ao abismo. Isso não significa não reconhecer a importância dos “tratamentos” psicológicos/psiquiátricos e muito menos o fato de que tal sistema de saúde no capitalismo é um bem caro e muito pouco acessado pela população mais carente, ou seja, é elitista. Coisa que o pobre quase não tem acesso e quando tem, ainda corre o risco de receber uma assistência sucateada e/ou repressora/carcerária (como já denuncia a muitos anos pelo Movimentos Antimanicomial no Brasil e no mundo).

Sócrates, os intelectuais, a ideologia e o uberiado.

Toda ideologia, ou hegemonia cultural, deem o nome que quiserem, é um “sistema”, uma “estrutura” em termos marxistas, ou um “tipo ideal” weberiano.

Esse “sistema” nunca existe em forma pura em um único indivíduo, existe sempre fragmentado, híbrido, mais forte em uns, mais fraco em outros… mas, no conjunto é ainda um “sistema” que implica ações coletivas hegemônicas-práxis-tendências históricas. Não é à-toa que o sujeito que agride “sua esposa”, também tem grandes chances de achar que “bandido bom é bandido morto” ou de dizer “que até tem um amigo gay”, mas acha que ele tem que levar uma vida discreta, ficar “no seu devido lugar”.

Os vários comportamentos de um “modo de vida”, de um “sistema ideológico”, de uma “tendência ideológica”, se combinam, aparecem juntos no cotidiano, quando chamados à emergir pelas circunstâncias, mesmo que aparentemente não tenham relação uns com os outros.

Esse mesmo sujeito que agride mulheres, pode se autodefinir como uma “pessoa de bem”, que “ajuda” a mulher em casa (nas atividades vistas como “lugar de mulher”), contribui para o “Criança Esperança” da Rede Globo, mas achava que projetos como o Bolsa Família eram “esmolas à vagabundos que mamavam nas tetas do Estado” e que crianças de rua, em situação de vulnerabilidade, são potenciais bandidos.

Esse sujeito, não se define como uma pessoa racista, trata bem o seu porteiro, o lixeiro, mas não acha estranho que a ideia de “beleza” veiculada na TV, revistas, propagandas em jornais impressos, capas de caixas de remédio, outdoors, etc. seja sempre uma beleza “branca” e raramente apareçam negros, indígenas e seus mestiços em nenhum desses espaços.

Etc., etc., etc.

As ideologias sempre são mais “unidades” que “fragmentação”. Mesmo que nunca sejam um bloco monolítico!

Unidades dificilmente observáveis como tal, pois são unidades vistas pelo “saber” como “normalidades”.

A ideologia dominante é a normalidade (necessariamente dominante).

O saber acadêmico, por sua vez, é feito hegemonicamente por setores intermediários da sociedade, pessoas “especiais-normais”, entendidos e auto reconhecidos como pessoas de status especial, da cultura culta: homens (sobretudo nas ciências duras), héteros, brancos, de classes médias, urbanos, ocidentalizados e familiarizados com uma cultura popular e erudita “internacional”; detentores de uma cultura acadêmica que remonta à “modernidade” ocidental colonizadora; leitores de seus próprios pares em ciclos restritos, autorreferenciados; produtores e consumidores de uma indústria cultural universitária, regulada por sistemas de massificação e uniformização de produtividade acadêmica: ministérios de Educação e Cultura, CNPQs, Lattes, universidades, bancas, agências de fomento, etc.

São pessoas “especiais-normais” que fazem ciência com as ferramentas disponíveis num mundo normatizado pela ideologia. São produtores/reprodutores sofisticados da ideologia, daquilo que para o homem comum é uma “vida prática” irrefletida.

A maior ou menor inserção na normatividade leva a uma maior ou menor conformidade com a mesma normatividade “objeto” do saber. A cultura dos “produtores e produtoras do saber”, como uma cultura de elite (acadêmica) dentro da indústria cultural geral, ocidental, masculina, de normatividade hétero, branca etc., tal como falada acima, coloca apenas uma parte da “normalidade” como padrão de análise.

Essa visão fragmentada, um lugar de produção do saber específico e elitista, leva, muitas vezes, a uma visão fragmentária dos sistemas sociais: o olhar de cima e da parte!

Quando a história se manifesta com radicalidade, em momentos extremos da vida social, momentos de “crises”, tempo de abalos, como os que vivemos a alguns anos, os sistemas ou estruturas mais ou menos vazados e fluídos, tendem a se solidificar, tornam-se mais “puros”, e a fragmentação aparente torna-se uma unidade mais clara. A ideologia torna-se mais ideologizada! A classe mais classificada (tal como a raça, mais racializada; sexualidades divergentes, mais sexualizadas e demarcadas na sua posição subalterna etc.) e o lugar dos desclassificados mais demarcados!

Nesses momentos as ideologias aparecem de maneira mais objetiva, demarcada, na ação dos indivíduos e coletividades: o racista fica mais tranquilo pra externalizar o seu racismo, momento no qual ele mesmo, às vezes, passa a ter consciência do que pensa: pode xingar haitianos imigrantes no Brasil, pode reclamar de ver pessoas pobres/negras/indígenas nos aeroportos, pode dizer que médicos cubanos não tem aparência física de “médicos”, pois são semelhantes a “empregadas domesticas”, etc., etc., etc.

Quando a história se manifesta com radicalidade, em tempo de radicalidade e crise, abre-se uma brecha para que “os produtores e as produtoras” do saber, percebam a normatividade como luta, conflito e hegemonia: imposição de uma parte sobre o todo, de um sistema sobre a fragmentação, que é a constituição de qualquer normatividade/normalidade. É uma chance para que eles e elas (produtores do saber: o sujeito “especial-normal”) também percebam de “onde” falam, “como” falam e com que “ferramentas” constroem “normalmente” o seu saber “normatizado” e “normatizador”.

Neste momento, eventualmente, podem assumir um papel importante de colaboradores de um pensamento antinormativo e radical, contribuinte da mudança radical necessária, um saber parceiro da práxis, dentro de uma práxis anti-ideológica e de mudança social…

Caso contrário, permanecem meros reprodutores inconscientes de sua arte de normatizar sofisticadamente.

Ou, como diria Sócrates para Íon, referindo-se ao fato de ele não ser propriamente um detentor de arte [tékhne] mas muito mais um inspirado, ou melhor: um entusiasmado [em + theos = “em Deus”, ter um deus dentro] por Homero e, por conseguinte, pela Musa:

Sócrates: Assim, se você, possuindo arte (aquilo que eu dizia agora há pouco), depois de me prometer uma demonstração sobre Homero, fica agora me enganando, você faz mal; mas se você não possui arte, e por uma porção divina, estando tomado por Homero e nada sabendo, diz muitas e belas coisas sobre o poeta (conforme eu disse a seu respeito), você não faz nada de mal. Escolha então como você prefere ser considerado por nós: homem malfeitor ou divino…

Íon: Há muita diferença, Sócrates! Pois é muito mais belo ser considerado divino!

Sócrates: Para nós então algo mais belo lhe pertence, Íon: ser divino e de Homero um louvador sem arte!

Nesta história a Musa é o Capitalismo, Homero é a ideologia e Íon é o intelectual “especial-normal” entusiasmado.

Sócrates deveria ser, talvez, o uberiado.

Os intelectuais e as empregadas domésticas

O intelectual acadêmico de modo geral tende a achar que as “coisinhas do dia a dia” são empecilhos para sua produção. No Brasil, em particular, onde há uma radical separação do trabalho manual (inferiorizado) com o trabalho intelectual (superiorizado pela ideologia), a maior parte dos intelectuais acadêmicos medianos está em uma condição socioeconômica, racial e de gênero, que lhe permite “terceirizar” as “coisinhas do dia a dia”: cuidado com a casa, com os filhos, comprar pão, lavar louça. O mesmo no caso de “coisinhas do dia a dia” que não seriam propriamente do cotidiano “do lar”, mas que seriam do cotidiano da “vida pública”: a greve na sua universidade, a greve de ônibus (grosso modo esse intelectual sequer pega ônibus), a organização nos bairros de periferia contra o aumento da conta de luz (normalmente ele não mora na periferia) etc.

Todas essas “coisinhas” tendem a ser terceirizadas pelo intelectual acadêmico brasileiro mediano: sejam as coisinhas do dia a dia “do lar” (que ficam terceirizadas para mulheres/mães/avós ou empregadas domésticas/mulheres/negras/indígenas), sejam as coisinhas da “vida pública” (que ficam terceirizadas ou afastadas do mundo do intelectual que, no máximo, reflete sobre elas mas não se mistura).

Os resultados disso são variados, mas existem dois que são bem curiosos e que quero ressaltar aqui:

1. A completa falta de comunicação e conexão sensível entre a reflexão e a prática do mundo real, com intelectuais que muitas vezes não conseguem (no sentido de não terem habilidade) se comunicar para além do mundo de seus pares.

Claro que a eventual comunicação entre intelectuais e as “pessoas comuns”, por si só já é difícil, talvez, em qualquer lugar e situação. É uma tarefa árdua para qualquer intelectual, até mesmo para os ditos intelectuais “engajados”. Mas é fato que o afastamento do mundo das “coisinhas do cotidiano” deixa a dificuldade maior ainda, uma vez que o conjunto de códigos comunicacionais se cria em mundos quase isolados. O mundo do intelectual não se comunica com o mundo do trabalhador “braçal”: a não ser quando este segundo é um “objeto de estudo” do primeiro.

A proximidade, em si, não resolveria o problema, mas daria ferramentas comunicacionais comuns que poderiam ser usadas com alguma eficiência. Minha fala aqui, bastante emplumada, já mostra um pouco dessa dificuldade, apesar de que é conscientemente uma fala para “os intelectuais acadêmicos”, fazendo uso de sua forma de comunicação, dita, “culta”.

Um exemplo importante dessa desconexão é o fato de o Currículo Lattes ter se tornado um mundo à parte, separado, dos currículos “das pessoas comuns”. As pessoas comuns têm currículo profissional, os intelectuais têm um currículo específico, com regras próprias de uso.

E essas regras são tão complexas que muitos estudantes universitários de origem “comum”, “popular” (vindos do mundo das pessoas comuns), esses que compram pão na padaria e pegam ônibus para ir à universidade, se sentem obrigados a fazerem oficinas, cursos, minicursos etc. de como preencher o temido Currículo Lattes. Isso mostra que as “coisinhas do dia a dia” do intelectual, as suas banalidades, aquilo que ele reclama de ser obrigado a fazer, estão num outro nível existencial: o mundo da técnica, da tecnologia, do texto, da ciência, que é grosso modo diferente do mundo da vida “comum”.

Enquanto o cidadão comum diz “Puxa vida, ainda tenho que desentupir a pia!” ou, pior, “Ainda tenho que conseguir o dinheiro da conta de luz!”; o intelectual acadêmico mediano, diz: “Puxa vida, ainda tenho que colocar aquele artigo sobre a hermenêutica e a descontração do sujeito na época da reprodutividade técnica no Instagram… no Lattes!”.

2. A segunda coisa é o empobrecimento do mundo da reflexão, uma vez que esta já nasce, desde seu início, sem a experiência (ou proximidade com a experiência) da vida vivida pela maior parte das pessoas que são “objetos” de estudo dos intelectuais acadêmicos. E mais, a reflexão nasce no mundo do privilégio, de classe, raça/etnia, gênero e região, dentre outros, se considerarmos que a maioria dos “grandes intelectuais” é homem, branco, classe média/alta etc. e tal.

A maioria dos grandes livros da “humanidade” existe também pelo fato de que o autor teve tempo (“ócio com dignidade”, diriam os romanos) para produzir “intelectualmente”, enquanto outros homens e, sobretudo, mulheres (muitas vezes de grupos sociais, raciais, étnicos e regionais subalternizados) estiveram privados de tempo (e da dignidade). A terceirização do trabalho manual garante a produção do trabalho intelectual de poucos. Isso faz parte de uma economia política do saber (economia em termos “econômicos” mesmo!) muito longa. Isso ocorre em muitos lugares do mundo, mas no Brasil e América Latina ocorre de forma mais aguda.

Creio que aqui, não se trata de uma simples “divisão social do trabalho”, na medida em que ocorrem especializações de trabalhos/funções nas sociedades. Obviamente que isso ocorrer em termos gerais em todo o mundo. Mas no nosso caso específico (Brasil/América Latina) ocorre, concomitante à divisão social do trabalho, uma aguda hierarquização social/racial e de gênero no mundo do trabalho. Em outras sociedades ditas “complexas” não necessariamente a divisão social do trabalho ocorre associada a determinadas hierarquizações do trabalho, intelectual versus manual/doméstico, de forma tão brutal. Ou não há uma hierarquização tão nítida que implica a liberação da obrigação de se fazer “aquilo que todo mundo faz mesmo que não goste”, para aqueles que detém um “status superior”do ponto de vista intelectual.

Em outros lugares do mundo o intelectual joga o seu próprio lixo fora, mesmo que não goste; embala suas próprias compras no supermercado, mesmo que perca o tempo que poderia estar gastando numa tese.  

A questão central não é que os intelectuais, digamos, não devessem achar monótono ou uma perda de tempo lavar louça ou trocar a fralda do próprio filho/filha, a questão é que todo mundo no mundo, as pessoas normais, fazem coisas que não gostam. E o mais importante, sobretudo no caso das sociedades escravistas e hiper hierarquizadas como as latino-americanas, é o fato de que as coisas do cotidiano sejam hierarquizadas, inferiorizadas como coisas domésticas, que alguém vai fazer “no meu lugar”. Ora, não gostar de lavar louça não é necessariamente uma coisa ruim. Mas a questão aqui não é “gostar” ou “não gostar” de fazer algo. A questão é “poder” ou “não poder” fazer algo: relações de poder e privilégio!

Tudo isso que eu estou falando não é novidade nenhuma.

Mas é bom repetir que o sistema produtivo do saber é não apenas empobrecido pela desconexão de experiência e pelo privilégio, mas também contribui para manter o privilégio e as experiências humanas em escala hierárquica, divididas entre coisas úteis e “coisinhas do dia a dia”, inúteis, com às quais o intelectual mediano não se envolve; mas que alguém vai fazer no lugar dele.

No Brasil, por exemplo, o outro lado da moeda de um/uma grande intelectual é a sua empregada doméstica, pobre, afro-brasileira e/ou indígena.

Aqui entre nós uma coisa não existiria sem a outra.