No exato instante.

No exato instante em que a bala atravessa a epiderme, a derme e o tecido adiposo de qualquer parte de teu corpo… No momento exato, no exato instante em que o metal escaldante corta e queima célula a célula em frações de segundo, rompendo vasos, fragmentando ossos, adentrando em miolos, neutralizando neurônios, esmagando substancias, espatifando carne, triturando pele, explodindo olhos, corroendo pensamentos… Neste exato instante, enquanto a bala atravessa a cabeça de um lado a outro, aproveitando-se por vezes dos caminhos dos orifícios pré-existentes, do canal do ouvido, do nariz ou dos olhos, espatifando as paredes do organismo… Neste exato instante…


No instante exato em que a faca rompe as barreiras da pele e adentra bravamente a barriga, rasgando tudo, lubrificando de sangue seu caminho metálico-cintilante… Neste exato instante em que as tripas se rendem e a dor se atiça, no momento em que as entranhas vêem o mundo externo e a merda se espalha nas cartilagens, nos órgãos, na pele, nos poros… No momento em que a bosta sai de seu ritmo natural rumo ao reto e em que o metal cintilante trepida, esbagaça, embaralha, sacode, arrebenta tudo que tem dentro de teu corpo pré-defunto… Neste exato instante…


No exato instante em que o câncer carcomeu toda a matéria e espalhou-se nos órgãos profundos, levando à longa e dolorosa agonia… Na hora em que o pus se liberta da prisão tumoral que viveu por meses e se espalha levando fetidão ao organismo e correndo nas artérias como um sangue podre, pervertido, corrupto, maldoso, gangrenado, putrefato… No momento em que a dor amiga, que deixou vivo o organismo que já não realizava nada, abandona o corpo e nem nada mais sobra além de podridão… Neste exato instante…


No exato momento em que a morte decepa a tua cabeça e por uma micro-fração de segundo, enquanto teu crânio rola de teu pescoço ao chão em movimentos circulares, de rotação, batendo em peito, barriga, pernas, pés e terra… Neste exato instante enquanto os olhos de defunta cabeça ainda assistem o espetáculo bárbaro de teu fim, quando não é mais possível fazer nada pois teu cérebro gira como uma bola de futebol… Neste exato instante, no momento em que tu estás entre o aqui e o desconhecido, a existência e o nada, na fração de segundo em que a dor não significa nada… Na fração microscópica de segundo em que o teu cérebro ainda funciona…


Neste exato instante dirás:
– Quero mais, quero mais! Foi desgraçadamente bom tudo isso!

Publicado originalmente em MimComigoMesmo, 2012.

“Nem todo indígena tá na aldeia, nem todo pardo é preto”: sobre os “extermínios” dos indígenas urbanos e outros apontamentos para a esquerda (Parte I).

Começo esse texto com algumas perguntas:

1. O tema da “luta antirracista” tem incorporado peculiaridades locais e características regionais do Brasil? Pergunto, por exemplo, se o tema da “violência policial” ou do “extermínio da juventude” tem incorporado todos os sujeitos, infelizmente, atingidos por esse fato nas diversas cidades e regiões do Brasil?

2. Existiria, por exemplo, uma juventude indígena nas periferias do Brasil? Por consequência, seria possível falar em um extermínio da juventude (também) indígena nas cidades?

3. Sobre esse assunto, poderíamos perguntar se o que vale para o Rio de Janeiro ou São Paulo ou Porto Alegre também valeria para Manaus, Boa Vista ou para Belém?

4. Para onde foram os indígenas que habitavam o Brasil onde hoje estão os grandes centros urbanos, de norte a sul do país? O extermínio teria sido completo e esses sujeitos estão agora apenas nas aldeias e reservas indígenas (quando conseguem, a muito custo, garantir esses territórios)? Não comporiam, pelo menos em parte, o conjunto da população periférica e popular das cidades brasileiras, mesmo que por vezes mestiçados, de identidade “desindianizada” como “pardos”, “morenos”, “caboclos” etc.?

Admito que essas perguntas podem parecer de imediato bastante obvias e as respostas todo mundo já deveria, em termos genéricos, imaginar. Nestes termos, a maior parte das pessoas “de boa fé”, da esquerda, diria “sim!”, os indígenas estão por aí, inclusive nas cidades e nas periferias e sofrem também pelo racismo estrutural. Mas é necessário que se vá para além da ideia “genérica” e que se nomeie e especifique o fenômeno, pois quase sempre é na generalidade que se esconde a ideologia.

*****

A pouco tempo atrás, em meio aos debates e protestos mundiais contra a violência policial e o racismo estrutural (derivados do caso do covarde assassinato de George Floyd pela polícia dos EUA), a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) repostou um texto de @abyayalese no qual se afirmava que os povos indígenas também deveriam ser incluídos nos atos e debates antirracistas, uma vez que estes também são vitimados pelo racismo estrutural e violência policial, quando lutam por seus territórios e direitos. Incluindo aí os muitos indivíduos ou coletividades indígenas que vivem nos centros urbanos do Brasil. Dizia o texto:

“Também gostaria de lembrar que grande parte da população indígena vive nas cidades, nas periferias e também são alvo. Na maioria das vezes declarados como pardos, visto as dificuldades de se declarar indígena na cidade. Nem todo indígena tá na aldeia, nem todo pardo é preto e o genocídio e etnocídio vem de todos os lados”.[1]

Esse tema surgiu ainda, direta ou indiretamente, na fala de várias outras lideranças indígenas brasileiras. E de fato acabava sendo uma continuidade da discussão recorrente que afirma que os indígenas estão presentes em todos os espaços sociais, inclusive nas cidades, e que esse fato não faz de um “índio” (morador da cidade) menos indígena por isso, ou pelo menos não deveria fazer: “Eu moro na cidade/ Esta cidade também é nossa aldeia”, já dizia Márcia Kambeba.[2]

Lembro que na época da postagem da APIB alguém dizia, em um comentário no Facebook, que essa questão seria “óbvia” e perguntava “por que é que precisava de ser justificado?!”; dando a entender que a luta antirracista, contra a violência policial, também compreendia ou deveria compreender, automaticamente, a luta indígena.

Seria, realmente, tão óbvia assim essa conexão das lutas?

Vou argumentar aqui que deveria, mas não está sendo.

Vou argumentar que a esquerda em termos gerais (não só a esquerda que trata do tema especificamente racial) tende a não nomear o tema indígena na pauta antirracista especificamente urbana e por isso surgiu a postagem a que me refiro acima, problematizando tal postura.

Mas, antes de qualquer coisa, é fundamental não desconsiderar o contexto específico do caso Floyd, que gerou as movimentações onde a postagem surgiu. Trata-se de um caso objetivo de racismo e violência policial contra uma pessoa negra, um afro-norte-americano, tal como ocorre também cotidianamente no Brasil, sobretudo nas periferias, onde parte significativa da população é afrodescendente. Também é fundamental considerar a luta antirracista negra como uma luta específica, com sua própria história e pautas, uma demanda legítima, que deve ter o apoio de todas as pessoas, sejam elas negras, indígenas ou brancas.

Parto também de uma observação empírica: sempre me pareceu muito curioso que cidades como Belém, pra usar o caso onde vivo, onde muitos militantes carregam consigo as marcas físicas e culturais da descendência indígena (mesmo que como mestiços), a militância de esquerda, em termos gerais, quase não trata do outro lado do racismo em espaço urbano, aquele que recai sobre os indígenas e descendentes. Não estou me referindo aqui aos grupos de indígenas urbanos, auto identificados e com relação comunitária, que discutem sua condição racial e lutam por seus direitos. Refiro-me ao fato de que ao ocorrerem grandes atos/debates antirracistas com a participação do conjunto da esquerda raramente o tema “indígena urbano” é discutido ou colocado como uma das dimensões do racismo. Por exemplo, não existe um debate sobre “descendência”, a não ser em termos muito vagos e às vezes até “folclóricos” no conjunto da esquerda local. Também não se fala sobre a violência racial e policial atingir também os indígenas urbanos ou os descendentes de indígenas na periferia de Belém. Mas acredito que o caso de Belém deve se repetir em muitas cidades do Brasil, em todas as regiões, de norte a sul.

Daí, eu repito uma das perguntas que fiz no início desse texto: indígenas e/ou descendentes não comporiam, pelo menos em parte, o conjunto da população periférica e popular das cidades brasileiras, mesmo que por vezes mestiçados, de identidade “desindianizada” como “pardos”, “morenos”, “caboclos” etc.?

Por conseguinte, existiria violência racial contra esses sujeitos das/nas cidades? Em Belém? Em Manaus? Em Boa Vista? Em Santarém ou Marabá? Por que não perguntar também: Rio de Janeiro? Porto Alegre? São Paulo?

Por que a esquerda não pauta esse tema?

*****

Feitas as observações acima, gostaria de fazer uma primeira particularização do que pretendo falar nesse texto.

Quando se fala em “indígenas na cidade”, ou “índios citadinos” ou ainda “indígenas urbanos”, quase sempre se imagina os/as indígenas que por algum motivo migram das aldeias ou comunidades “rurais” em direção à cidade em busca de trabalho, educação, direitos etc. Pensa-se nos indígenas que seguem rumo à cidade e que quase sempre sabem que são “indígenas”, mantém ao todo ou em parte seus elementos políticos e linguísticos/culturais, mesmo que tenham vergonha ou medo de exibi-los no cenário urbano, por conta do racismo. Em todo caso, no senso comum (em parte compartilhado pela esquerda), parte-se do princípio de que os indígenas que estão na cidade deslocaram-se em direção à cidade, migraram para a cidade, em algum momento, pois a cidade não seria seu espaço “natural”.[3] E quase sempre a pessoa indígena por supostamente estar “fora do lugar” nas cidades, precisa permanentemente provar que é o que diz ser, inclusive para garantir direitos em contexto institucional.[4]

Ocorre uma permanente “fiscalização” pelos poderes instituídos e pelo senso comum dos sujeitos urbanos sobre a “autenticidade” da indianidade de indígenas vistos como “fora do lugar” que historicamente lhes foi “reservado”.

Indígena urbano? “Não é mais índio!”.

Indígena na universidade, usando jeans ou simplesmente atendendo a um celular? “Menos ainda”, como nos diz Edson Kayapó. [5] Ou como disse Ailton Krenak:

“Ao mesmo tempo em que dentro do Estado brasileiro se concebe a ideia de reservar uma terra para os índios, não se admite a ideia de que eles têm um trânsito entre aquele lugar e o resto do mundo.” [6]

Logo, a luta contra a invisibilidade no caso indígena é uma demanda dupla: a de aparecer/existir e, quando aparecer, ser aceito como diverso, fora de uma estereotipia de “índio genérico” que o coloca, obrigatoriamente, na “tribo” de “arco & flecha”. Ou seja: é uma luta para estar na História. Consequentemente, a presença indígena nas cidades é tanto uma realidade como é uma ausência, na medida em que os indígenas na cidade são vistos como fora do lugar (pois não pertenceriam ao mundo “normal”, “moderno”, “urbano” etc.).

Mas o fato é que por muitos motivos indígenas realmente vão para a cidade: em busca de educação, trabalho, por relações familiares, casamentos etc. No mundo urbano ocupam as universidades, como professores e alunos (hoje cada vez mais), estão no parlamento, são escritores e artistas reconhecidos. Também estão organizados politicamente como “indígenas” e por isso vivem entre a aldeia e a cidade. Em Belém tivemos forte participação de indígenas urbanos nas atividades do Congresso da Cidade (principalmente a partir de 2001) durante o governo de Edmilson Rodrigues (à época no PT); mais tarde surgiu a Associação dos Indígenas da Área Metropolitana de Belém (AIAMB) [7] e hoje existe a Associação Multiétnica Wyka Kwara (AMWK).

Em muitas cidades do Brasil há também aqueles que se encontram em condições de precarização e subcidadania, por exemplo, vendem seu “artesanato” nas praças das cidades e vivem nas periferias. Você vai encontrá-los na Redenção em Porto Alegre ou em praças de Florianópolis. O mesmo para São Paulo e Rio de Janeiro. Em Manaus eles constituem bairros/aldeias/comunidades inteiros.[8] Em Belém do Pará estão presentes indivíduos Juruna, Sateré-Mawé, Gavião, Munduruku, Karipuna, Cambeba, Amanayé, Tembé, Galibi, Apalai etc.

Recentemente em várias cidades da Pan-Amazônia indígenas passaram a ser vistos nos sinais de trânsito. São os Warao, que vindos das fronteiras nacionais da Venezuela, passaram por cidades como Pacaraima e Boa Vista (Roraima), Manaus (Amazonas) e Santarém (Pará), até chegarem a Belém do Pará; posteriormente seguiram para São Luís (Maranhão) e Cuiabá (Mato Grosso), ainda na Amazônia brasileira; tendo chegado ainda ao Rio de Janeiro (RJ), Salvador (Bahia) e Teresina (Piauí). Num dos mais complexos fenômenos de migração ocorridos na América do Sul nos últimos anos.[9]

Só esse contexto já seria suficiente para afirmar que os indígenas estão nas cidades e por sua condição de sujeitos subalternizados pela sociedade nacional (em sua maioria) devem padecer pelo racismo estrutural e uma série de violências daí derivados. Podem estar entre os jovens que são violentados diariamente nas periferias das cidades brasileiras apenas por serem negros e/ou pobres, indígenas e/ou pobres, negros/indígenas e/ou pobres etc.

Assim, a reivindicação de alguns indígenas urbanos de que “nem todo indígena tá na aldeia, nem todo pardo é preto e o genocídio e etnocídio vem de todos os lados”[10] é totalmente legítima e deve servir para todo o Brasil.

*****

Mas existe uma segunda questão da “presença indígena” nas cidades brasileiras que quero discutir aqui. Pois entendo que ela (essa segunda questão) é ainda menos discutida na pauta geral da esquerda do que o fenômeno de indígenas que vão/migram rumo às cidades.

A questão é que se considerarmos a diversidade das formações históricas regionais do Brasil, encontraremos diferenças e complexidades. As classes populares das cidades do Brasil variam bastante. Cidades como Salvador, por exemplo, são fundamentalmente negras, mas cidades como Manaus, Boa Vista e Belém são fundamentalmente indígenas. E muitas combinações podem existir a partir desses dois troncos basilares (nessas cidades citadas e em tantas outras), que se conectam, por sua vez, em muitos níveis, com os sujeitos populares de outras “etnias/raças”.

Em Boa Vista (RR), por exemplo, temos casos mais complexos da “presença” indígena na cidade. Lá, na percepção dos próprios grupos locais, Macuxi e Wapichana, a sua territorialidade originária objetivamente foi tomada pelo que hoje seria o espaço urbano dessa capital. Logo, para esses sujeitos, nem se trata de eles migrarem para a cidade, na verdade a cidade é que se formou nos seus territórios, onde eles continuam a viver e circular. Assim, estar na cidade é estar na “aldeia”, nos seus territórios originários. Mesmo que para o senso comum da população não-indígena e para as instituições, inclusive aquelas de resguardo dos direitos indígenas, o indígena “na cidade” não é considerado “indígena”, correndo o risco de perder a indianidade e os seus direitos.[11]

E os indígenas de Boa Vista ou, virtualmente, de qualquer outra cidade do Brasil estariam errados em afirmar que foram as cidades que ocuparam suas aldeias e não os indígenas que migram para as cidades?

Sabemos que todas as cidades do Brasil, das pequenas às grandes, participaram da construção ideológica da “identidade nacional” que as define como “brasileiras” (mestiças, “mito das três raças”, etc.) e ocidentais (no sentido em que seriam tributárias da “civilização” originária da Europa). E por isso as populações negras e/ou indígenas são sempre silenciadas em vários níveis nas imagens públicas de cada cidade.

 Quase sempre são os movimentos sociais em geral, e os movimentos populares de base racial em particular, que questionam a visão hegemônica sobre o Brasil e forçam o debate público para reconhecer os sujeitos/sujeitas marginalizados.

Nesse sentido os movimentos sociais são “educadores”, pois questionam criticamente o debate público que se diz “neutro”. Por isso Nilma Lino Gomes caracterizou o movimento negro brasileiro como “movimento negro educador”. [12] Não fosse a pressão deste movimento, muitos negros e negras ainda hoje se autodefiniriam como “pardos” nas estatísticas do IBGE. E isso não ocorreu só no Brasil. Recentemente a Argentina (país da América Latina que menos se vê como negro, ou indígena), por pressão do movimento negro organizado, começou a rever o discurso hegemônico da identidade nacional marcado até então pela invisibilidade da população afrodescendente. [13]

Não ocorreria algo similar com os indígenas urbanos? Amalgamados nas cidades em categorias como “caboclo”, “moreno” e o “pardo” do IBGE, como afirmaram autores como Anahata? [14]

Da mesma forma, graças aos movimentos indígenas e aos intelectuais indígenas (homens e mulheres), que fizeram a mediação entre as “aldeias” e as “cidades”, muito da história da América Latina foi revista, identidades políticas reconfiguradas, legislações constituídas, durante todo o século XX e ainda hoje, desde Jose Mariátegui, até Tarcila Rivera Zea, os Zapatistas e Evo Morales, Silvia Rivera Cusicanqui, Rigoberta Menchú, Raoni Metuktire, Ailton Krenak e Sônia Guajajara etc.[15]

Porém, mesmo com a potência do movimento indígena e sua crítica à narrativa hegemônica da história do Brasil, de suas regiões e de suas cidades, hoje, no momento em que o tema racial é um dos elementos fundamentais do debate público, os sujeitos indígenas parecem terem ficado ainda parcialmente invisibilizados, pelo menos no que diz respeito aos temas políticos da esquerda (em termos gerais) nas partes urbanas da vida nacional.

Logo, é preciso que se considere duas questões:

1. A primeira é o fato já falado aqui, da presença indígena nas cidades no sentido em que estes foram/vão para a cidade e nela permaneceram definitiva ou temporariamente.

2. Outra questão é a necessidade de reconhecermos que muitos moradores populares da cidade, pessoas urbanas, periféricas, nascidas nas cidades e que têm famílias que vivem nas cidades, às vezes a muitas gerações, são também descendentes de indígenas (quando não são indígenas “propriamente ditos”), quase sempre desindianizados, vistos como “caboclos/caboclas”, “caiçaras”, “pardos/pardas”, “morenos/morenas”, “caipiras”, etc. Ou aqueles milhões de indivíduos indígenas aqui presentes no início do processo de conquista/colonização teriam simplesmente desaparecido biológica e culturalmente do que hoje são os centros urbanos?

*****

Em cidades do Norte do Brasil, mas creio que também em muitas outras cidades de todo o Brasil, os fenótipos ameríndios são facilmente identificáveis, sobretudo nas periferias, mesmo que mestiçados com brancos, negros, em uma infinita possibilidade de variações. Nas periferias das cidades do Norte do Brasil não é incomum vermos pessoas de cabelo preto e liso, olhos amendoados, pele escura/avermelhada, cara redonda, “nariz de taboca” (como se costuma dizer nos interiores da Amazônia), de tronco largo e perna curta (aquilo que no interior do Pará é chamado de “corpo de apanhador de açaí”). Pessoas que mantêm ao todo ou fragmentariamente elementos cosmológicos ameríndios, a pajelança “cabocla”, praticam medicina popular originária, mantêm os hábitos alimentares da “civilização da mandioca”, linguagem “cabocla” anasalada e têm origem familiar “interiorana” e ribeirinha etc.

Logo, as cidades são lugares (também) indígenas não só porque os indígenas migram rumo à cidade (como se as cidades do Brasil não fossem também suas aldeias, com o são, também, quilombos) mas porque historicamente todo o Brasil foi arguido sobre as aldeias indígenas, inclusive onde hoje temos grandes cidades. E os sujeitos indígenas e seus descendentes são, portanto, parte da totalidade da história do Brasil, do passado e do presente, “rural” e “urbano”, em todas as regiões, particularmente, mas não exclusivamente, no Norte do Brasil. Discutir o racismo e o extermínio da juventude no Rio de Janeiro, certamente é discutir a questão negra, fundamentalmente, mas discutir o mesmo tema em Manaus, Belém, Boa Vista, Marabá, Santarém (no Rio de Janeiro, São Paulo, não?), sem que se pronuncie a presença indígena ou a descendência indígena, deixa uma marca de silêncio difícil de acolher.

Obviamente a presença “biológica” verificável no fenótipo é importante não em si mesma, uma vez que se sabe que esse não é o elemento que determina em última instância as relações sociais e históricas racializadas (o racismo é um fenômeno político e histórico não exclusivamente “biológico”),[16] mas não deixa de ser emblemático como essa “presença” fenotípica é tão pouco pronunciada pelo conjunto da esquerda no que diz respeito ao tema do racismo e violência, extermínio da juventude, etc. em muitas cidades brasileiras, tais como Belém do Pará.

Para além do fenótipo, mas não sem ele (pois a polícia sempre sabe quem é o “não-branco”!), o mais importante é o fato histórico de que os heterogêneos grupos indígenas do território que hoje chamamos de Brasil, fizeram parte de uma longa história de escravização, extermínio e de epistemicídio e essa história os colocas na condição de povos marginalizados no passado e ainda hoje na história do Brasil. Mas os indígenas também resistiram e resistem até hoje. Acreditar que eles não estão presentes nas cidades brasileiras, mesmo que mestiçados e em boa parte “desindianizados” ou como descendentes, seria o mesmo que aceitar que a história da colonização e massacre foi completa e vitoriosa. Nesse sentido concordo plenamente com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, quando diz:

“Não é possível fazer todos os brasileiros deixarem de ser índios completamente. Por mais bem sucedido que tenha sido ou esteja sendo o processo de desindianização levado a cabo pela catequização, pela missionarização, pela modernização, pela cidadanização, não dá para zerar a história e suprimir toda a memória, porque os coletivos humanos existem crucial e eminentemente no momento de sua reprodução, na passagem intergeracional daquele modo relacional que ‘é’ o coletivo, e a menos que essas comunidades sejam fisicamente exterminadas, expatriadas, deportadas, é muito difícil destruí-las totalmente”. [17]

*****

Desta forma, parece necessário a revisão do debate racial, para que indígenas e/ou descendentes urbanos sejam pautados, pronunciados, pelo conjunto da esquerda na luta antirracista nas cidades. É obvio que o movimento negro tem a responsabilidade de ressaltar o elemento negro dentro da luta antirracista e a toda a esquerda (em termos gerais) cabe apoiar essa posição. Não poderia existir nenhuma margem para dúvida sobre esse ponto!

Assim como, na medida em que o movimento indígena (representado no caso que estou tratando aqui pela postagem da APIB), se manifesta buscando ampliar o tema, incluindo os indígenas urbanos, a esquerda como um todo deveria também dar ouvidos a isso. Não houvesse a necessidade de se especificar a questão e de se pronunciar a especificidade, possivelmente o texto de @abyayalese repostado pela APIB não teria nem surgido. Se surgiu é porque havia um personagem ausente onde não deveria estar.

Por isso parece importante que, dentre outras coisas, as especificidades de muitas cidades do Brasil sejam pronunciadas, sobretudo no debate público do conjunto das reflexões críticas de esquerda. O Brasil é muito grande para ser caracterizado unicamente pela reflexão da intelligentsia sudestina e da intelligentsia da esquerda sudestina, por exemplo.

A historicidade do Norte do Brasil, antigo Grão-Pará, pode contribuir com esse tema. E seria bom que pudesse dar base para revisões da esquerda em outras regiões do Brasil, onde talvez os agrupamentos indígenas e descendentes ainda se encontrem invisibilizados em meio à “caboclos/caboclas”, “caiçaras”, “pardos/pardas” e “caipiras” urbanos. Invisibilizados muito mais do ponto de vista ideológico do que propriamente “inexistentes”, inclusive nos centros urbanos onde o IBGE diz quase não existirem indígenas e descendentes.

Nos textos seguintes vou partir do caso de Belém do Pará (fazendo relações com outros espaços, na medida do possível) para tentar ampliar esses argumentos acima expostos.

Por último, deixo demarcado que não tenho relação formal com movimentos indígenas, apesar de que como professor, tenho algum contato com amigos/amigas alunos e professores indígenas de Santarém e de Belém. Portanto, não tenho nenhuma pretensão de falar por qualquer grupo (nem poderia mesmo que quisesse) mas posso falar para o conjunto da esquerda, particularmente a “urbana”. Apenas para demarcar meu espaço de reflexão, falo como sujeito urbano de esquerda, que não deixa de fazer parte, mesmo que de forma distante, da condição de população mestiçada pela história de violência por qual passou o Brasil e a Pan-Amazônia, história essa que continua até hoje. Falo a partir de Belém do Pará, antiga Mairi, terra de Guaimiaba e terra da Cabanagem, a maior revolta popular da história do Brasil, que foi levada a cabo tanto por indígenas, quanto por negros, populares e desvalidos de toda sorte…


[1] APIB. “Por que devem nos inserir na pauta antirracista?” (#Repost @abyayalese). 01 Jul. 2020. Facebook: APIB Oficial. Disponível em: https://www.facebook.com/apiboficial/photos/a.1851616878441806/2621268118143341

[2] KAMBEBA, Márcia. Ay kakuyri tama. 5 poemas de Márcia Wayna Kambeba. Livro & Café. 2020. Disponível em: https://livroecafe.com/2020/07/15/5-poemas-de-marcia-wayna-kambeba/

[3] Talvez isso explique o porquê de não haver ainda na literatura especializada “um conceito apropriado para o fenômeno dos índios que residem nas cidades, pois este ainda continua sendo buscado pelos pesquisadores”, como diz a antropóloga Laura Ximenes Ponte: PONTE, Laura Arlene Saré Ximenes. A população indígena da cidade de Belém, Pará: alguns modos de sociabilidade. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 4, n. 2, p. 261-275, maio-ago. 2009. p. 263.

[4] Sobre isso, para o caso dos indígenas que estão em Belém do Pará, afirma Laura Ximenes Ponte: “Os indígenas que estão em Belém procuram firmar a sua condição de índios por meio da Associação criada e de outros mecanismos institucionais, pois a FUNAI exigiu a constituição de uma organização coletiva para que possam ser reconhecidos como índios citadinos, mas, independentemente disso, ressalta-se que a manifestação da identidade indígena prescinde do reconhecimento institucional. Para tais indígenas, é mediante o reconhecimento pelo órgão protecionista que obterão os mesmos direitos que os índios aldeados já possuem”; Ibidem, p. 269. Para caso parecido em Boa Vista (RR), ver: MELO, Luciana Marinho de. Deslocamentos Macuxi e Wapichana em Boa Vista – Roraima: perspectivas a partir da ancestralidade. Textos e Debates, Boa Vista, n. 32, p. 163-174, jan.-jun. 2019.

[5] Sobre indígena de celular “não parecer indígena”, ver:  KAYAPÓ, Edson. Edson Kayapó explicando o que ser indígena no século 21. You Tube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Q5iajNT3XgE

[6] KRENAK, Ailton. A Potência do Sujeito Coletivo (Parte II). Racismo Ambiental. 2018. Disponível em: https://racismoambiental.net.br/2018/06/02/ailton-krenak-a-potencia-do-sujeito-coletivo-parte-ii/

[7] Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia. Indígenas na cidade de Belém. Associação dos Indígenas da Área Metropolitana de Belém (AIAMB) (Fascículo 1). Disponível em: http://novacartografiasocial.com.br/download/01-indigenas-na-cidade-de-belem/

[8] Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia. Indígenas na Cidade de Manaus: Os Satere-mawé no Bairro Redenção (Fascículo 17). Disponível em: http://novacartografiasocial.com.br/download/17-indigenas-na-cidade-de-manaus-os-satere-mawe-no-bairro-redencao/

[9] A complexidade do processo migratório do Warao é quase sempre ideologizada no discurso midiático e imperialista que explica tudo pela tese da “crise humanitária” na Venezuelana. Para uma visão mais crítica desse fenômeno ver, dentre outros:  MARIN, Rosa Elizabeth Acevedo Marin e FERREIRA JÚNIOR, Amarildo. Migrantes, “refugiados venezuelanos”: conflitos e políticas de estado. In: Tiago Siqueira Reis et al. Coleção história do tempo presente: volume II. Boa Vista: Editora da UFRR, 2020. p. 224-252.

[10] Citando mais uma vez: APIB. “Por que devem nos inserir na pauta antirracista?” (#Repost @abyayalese). 01 Jul. 2020. Facebook: APIB Oficial. Disponível em: https://www.facebook.com/apiboficial/photos/a.1851616878441806/2621268118143341

[11] Sobre essa questão ver: MELO, 2019, op. cit.

[12] GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador. Petrópolis: Vozes, 2017.

[13] FRIGERIO, Alejandro Frigerio, LAMBORGHINI, Eva & MAFFIA, Marta. “Afrodescendientes y Africanos em Argentina”. Aportes para el Desarrollo Humano en Argentina 5. PNUD, 2011.

[14] Argumentou antes de mim, neste sentido Anahata, referindo-se aos “pardos”: ANAHATA. “A complexidade do “pardo” e o não-lugar indígena”. Medium (2019). Disponível em: https://medium.com/@desabafos/a-complexidade-do-pardo-e-o-n%C3%A3o-lugar-ind%C3%ADgena-a8a1e172e2b0

[15] Alguns autores que discutem o tema:

MUNDURUKU, Daniel. “Nós, indígenas, somos aqueles por quem esperamos”. Pernambuco: suplemento cultural do Diário Oficial do Estado. Disponível em: https://www.suplementopernambuco.com.br/artigos/2133-n%C3%B3s,-ind%C3%ADgenas,-somos-aqueles-por-quem-esperamos.html#:~:text=Os%20direitos%20ind%C3%ADgenas%20foram%20uma,um%20benef%C3%ADcio%20a%20n%C3%B3s%20oferecido.&text=Como%20diziam%20os%20primeiros%20mentores,Somos%20aqueles%20por%20quem%20esperamos.

ZEA, Tarcila Rivera. “Mujeres indígenas americanas luchando por SUS derechos”. In Liliana Suárez y Rosalva Aída Hernández (editoras). Descolonizandoel feminismo. Teorías y prácticas desde los márgenes. Editorial Cátedra; Madrid, España, 2008.

Mariátegui, José Carlos. Setes ensaios de interpretação da realidade peruana. São Paulo: Expressão Popular/CLACSO, 2008.

Burgos-Debray, Elizabeth y Menchú, Rigoberta. Me llamo Rigoberta Menchú e así me nació la consciencia. La Habana: Casa de las Américas, 1991.

CUSICANQUI, Silvia Rivera. Oprimidos pero no vencidos. La Paz: La mirada selvaje. 2010.

SILVA, Claudia Zapata. Intelectuais indígenas en Ecuador, Bolivia y Chile: Diferencia, colonialismo y anticolonialismo. La Habana: Casa de las Americas, 2015.

[16] Para um debate mais amplo sobre “raça” e “racismo” como fenômenos políticos, históricos e sociais (e não exclusivamente biológico), ver: Munanga, K. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: SEMINÁRIO NACIONAL RELAÇOES RACIAIS E EDUCAÇÃO-PENESB. Rio de Janeiro, 2003. Anais… Rio de Janeiro, 2003. Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf ; Gomes, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no brasil: uma breve discussão. Geledés. Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2017/03/Alguns-termos-e-conceitos-presentes-no-debate-sobre-Rela%C3%A7%C3%B5es-Raciais-no-Brasil-uma-breve-discuss%C3%A3o.pdf Acesso em: 02 out. 2017.

[17] VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é”. Instituto socioambiental. 2006. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/No_Brasil_todo_mundo_%C3%A9_%C3%ADndio.pdf

Belém, “Cidade das Mangueiras”? Por uma cidade que vá do mito à utopia!

Na décadade 1920 um visitante da cidade de Belém se impressionava com a grande quantidade de vegetação urbana, com os parques arborizados e com as frondosas mangueiras da capital do Pará. Dizia ele:

“Da janella do meu quarto, neste Grande Hotel da Paz, no popular e aristocrático Largo da Pólvora, eu tenho sob os olhos, numa visão larga e espraiada, como uma tela de paisagem, a cidade de Belém, com o seu casario multiforme e cor de cinza (…).

Entremeando as casas e os palacetes, enfeitiçando-os, com o encanto de sua chlorophila, as árvores de um verde carregado, aqui e ali, alegram a architectura da cidade (…).

As tuas árvores são a tua maravilha. Não conheço cidade de arborização mais perfeita e mais completa.

As tuas ruas, as tuas praças, as tuas avenidas, os teus largos, os teus ‘boulevards’ parecem as alamedas de um parque.

Ah! As tuas mangueiras, simetricamente dispostas, quer nas ruas mais elegantes, quer nos becos mais sórdidos, fornecem ao visitante uma nota de novidade (…).

Que maravilha os parques de Belém!”

O viajante em questão era o escritor e jornalista cearense Raimundo de Menezes, que visitou Belém entre os anos de 1925 e 1927. Suas impressões sobre a cidade foram publicadas no livro “Nas Ribas do Rio-Mar”, impresso no Rio de Janeiro em 1928.

O texto do autor tratava principalmente do centro da cidade, como dá para perceber pela referência ao Grande Hotel que ficava no Largo da Pólvora, hoje Praça da República. Mas outros autores fizeram referência às arvores e jardins das ruas suburbanas da cidade.

De Campos Ribeiro, por exemplo, no seu famoso “Gostosa Belém de outrora…”, publicado em 1965, tratou de suas memórias de infância e adolescência no Umarizal, bairro popular à época. O seu Umarizal é o bairro das décadas de 1910 e 1920. Era naquela época ainda um lugar “tranqüilo (…) com suas centenárias mutambeiras, seus cercados com caramanchões de onde se debruçavam recendentes jasmineiros em flor”, dizia o cronista.

De fato, Belém poderia ser considerada até a primeira metade do século XX como uma cidade muito verde e com muitos elementos “naturais” dentro de sua malha urbana, incluindo aí igarapés e rios que ainda tinha uso como área de lazer e via de transporte.

Sobre esse último aspecto, para efeito de exemplo, temos um poema de Adalcinda Camarão, publicado na revista A Semana, em 1939, que trata do Igarapé das Almas (conhecido também por Igarapé das Armas):

“Igarapé das almas!

Igarapé dos caboclos

que não têm roupa nem calçados!

Igarapé dos predestinados

que vivem de lá pra cá,

rio abaixo, rio acima,

dias inteiros pra chegar no Guajará!

Trazem lenha, trazem frutas,

trazem peixe do salgado,

planta, farinha, açaí,

trazem tudo pro mercado…

(…)”

O igarapé era a conexão da cidade com os rios da região guajarina, com os produtos ribeirinhos e do campo, com o modo de vida interiorano, do qual Belém ainda era uma continuidade, sobretudo nos seus subúrbios.

O igarapé citado no poema era onde hoje fica a Av. Doca Souza Franco, no centro da cidade, também no Umarizal, mesmo bairro de De Campos Ribeiro. O bairro que era até então muito popular e suburbano, hoje é uma área bastante cara da cidade, com shoppings, supermercados e muitos edifícios de alto padrão. Muita coisa mudou por lá desde a época de Ribeiro e Camarão.

Para uns, as mudanças da cidade apareciam como efeitos da “modernidade”, vista com desconfiança, e que deixava a saudade de uma Belém “interiorana”, “antiga”, de hábitos tradicionais e com maior conexão com a “natureza”. Nesse sentido, a escritora Lindanor Celina escrevia nas páginas da revista Amazônia: Revista da planície para o Brasil, em 1955, lembrando daquela Belém do passado, donde ocorriam os banhos de igarapé à meia-noite, nas festas de São João. E lamentava sobre as mudanças modernizantes: “A nossa civilização afastou-se tanto da natureza e do provincianismo, que destoa, soa falso tudo isso, toda essa boa vontade em retroceder a um passado de nós tão distante”.

O problema é que aquilo que era criticado como uma modernidade “denaturalizadora” de uma Belém idílica em um passado romantizado, para indivíduos de classe média intelectualizada, como no caso de Celina, significou, na prática, para a maior parte da população, o crescimento desigual e desordenado da cidade, marcado pela pobreza e exclusão.

Novos bairros surgiram, assinalados por essas características, sem que houvesse um sistemático cuidado com a população periférica e muito menos com a relação entre cidade e “natureza”: quintais e florestas desapareceram na favelização dos bairros periféricos e igarapés viraram esgoto à céu aberto. As áreas alagáveis periféricas, nos bairros pobres, tornaram-se aquilo que conhecemos hoje por “baixadas”. E mesmo no centro, surgiram os canais a céu aberto no lugar dos antigos igarapés, como no caso do “canal de luxo” da citada Av. Doca de Souza Franco.

Em todos os casos veio a especulação imobiliária, o poder do dinheiro derrubando os quintais que sobraram, aterrando igarapés, e a cidade ficou cada vez mais parecida com uma cidade de blocos de concreto e vidro (os prédios da elite que cultua o american way of life, sobretudo se for em Orlando ou Miami), “caixas de fósforos” para classe média e palafitas equilibradas em áreas alagáveis para os pobres.

Por isso a “Cidade das Mangueiras”, como tantos habitantes de Belém falam orgulhosamente, é hoje uma das capitais menos arborizadas do Brasil, perdendo para muitas cidades que têm a fama de “selva de pedra”.

E, vejam bem, aqui não se trata de um depoimento melancólico e saudosista dos “tempos passados”, coisa muito recorrente no pensamento sobre a cidade de Belém – diga-se de passagem! Não estou aqui dizendo que o passado era melhor e por isso devemos voltar a ele, ou algo do tipo. E deixo claro que não estou aqui defendendo uma visão também idílica de Antônio Lemos como o “pai” da cidade e coisas do tipo.

De fato, Lemos teve o mérito de pensar a cidade de modo a “refrigerá-la”, garantir um clima mais ameno, com o plantio sistemático de mangueiras e outras árvores, assim como, com a planejamento de bosques em várias áreas da cidade. Essa política deu origem aos túneis de mangueira do bairro de Nazaré, por exemplo. Essas áreas são de fato um patrimônio da cidade. E sem dúvida nenhuma é muito mais prazeroso andar num túnel de mangueiras do que passear as 14h na Av. Almirante Barroso, uma avenida imensa e quase sem árvores.

Mas sabe-se que esses processos de “modernização” eram excludentes e na medida em que o centro se enchia de “boulevards”, os subúrbios foram progressivamente (durante o século XX) se convertendo em “periferias” e se expandindo excluídos da “modernidade” e da cidadania. Logo, Lemos e suas mangueiras, ou quaisquer outros “modernizadores”, devem ser vistos com a devida crítica, sem a construção de mitologias. [1]

O fato é que a cidade de Belém, que era retratada nas crônicas acima citadas como uma cidade bastante arborizada, foi durante o século XX e agora, início do século XXI, perdendo sua vegetação e sua qualidade de vida:

– No centro por conta da especulação imobiliária e a “modernização” de novo tipo, essa dos prédios quadrados e janelas de vidro, dos shoppings, dos prédios e quintais que viram estacionamentos, inclusive alguns prédios históricos, pelo descaso, pelas praças abandonadas etc.

– Na periferia pela exclusão, ausência de políticas públicas para habitação, ausência de espaços de lazer, de esporte, carência no saneamento básico, periferização e favelização.[2] E também pelo fato de que, quando finalmente projetos de saneamento chegam nas periferias, na grande maioria das vezes significa a remoção dos antigos moradores, que recebem um pagamento muito pequeno por suas casas removidas e acabam não aproveitando do resultado do saneamento nas áreas em que viveram a vida toda (a exemplo do que ocorre na bacia do Tucunduba, agora).

Atualmente sabemos que a cidade ganhará dois novos espaços “verdes”, ambos no centro. O “Belém Porto Futuro”, que será inaugurado ao que tudo indica com muito pouco finalizado (segundo o que denunciou a jornalista Franssinete Florenzano)[3] e o “Parque da Cidade”, onde antes existia um aeroporto de pequeno porte.

Ponto positivo pra Belém… se considerarmos apenas os bairros do centro onde esses espaços estão situados. Vá lá, menos mal, digamos. Mas, efetivamente, na periferia da metrópole, onde habita a imensa maioria da população, muito pouco está sendo feito…

Por outro lado, mesmo que todos saibam do clima da cidade, do calor infernal que ocorre entre as 11 e as 15, 16 horas, em áreas sem sombra (a imensa maioria das ruas da cidade), não tem sido incomum que os parques projetados na cidade sigam aqueles modelos europeus ou norte-americanos, sei lá, com grandes gramados ou áreas abertas e quase sem árvores. Isso mesmo: sem ou com poucas árvores. Em Belém do Pará… Sem contar que metade da área dos parques já nasce reservada para estacionamento, com asfalto e mais asfalto.

Espero que não seja esse o caso dos parques citados acima… Veremos me breve…

Seja como for, está na hora de irmos muito além da situação em que vive a cidade de Belém, governada por políticos de direita nos últimos 4 períodos. Precisamos pensar a cidade globalmente, entender Belém dentro do meio social e ambiental em que foi erguida e sobretudo termos um projeto de vida na cidade, um projeto de futuro, para as pessoas, para as ilhas, para a periferia, com áreas verdes, agricultura urbana – por que não? -, igarapés e não canais, população que não seja excluída de seus bairros nos projetos de “saneamento” …

Sei que isso soa muito utópico. Infelizmente estamos muito longe dessa cidade. Na verdade, o poste era mais para fazer a crítica da imagem que a cidade construiu de si mesma, dentre elas a ideia de uma “Cidade das Mangueiras”, quando temos mangueiras quase exclusivamente no centro.  Mais uma coisa leva à outra: derrubar mitos e erguer utopias da cidade, é necessário. Sem isso não sairemos do lugar.

O próximo governo, e espero que seja de esquerda, tem essa difícil tarefa pela frente. Desconstruir mitos e erguer realidades inclusivas e democráticas. Colocar de novo, ou colocar pela primeira vez, na pauta da cidade o tema da “cidade jardim”, da “cidade igarapé”, da “cidade rio”, da “cidade horta” ou da “cidade roça”, da “cidade ribeirinha”, da “cidade para pessoas”, com as pessoas, com dignidade e qualidade de vida – sobretudo para aqueles que mais precisam.

É uma tarefa dificílima, pois que a nossa “modernidade” atrasou demais a vida de Belém e de seus moradores!


[1] Pra quem quiser se aprofundar na crítica da ideia de “cidade do  já teve”, sendo o” já teve” o período da Belle Époque e de Lemos, ver o livro A cidade Sebastiana: era da borracha memória e melancolia numa capital da periferia da modernidade, de Fábio Fonseca de Castro.

[2] Sobre esse tema, ver o livro Aventura urbana: urbanização, trabalho e meio ambiente em Belém, de Edimilson Rodrigues.

[3] Ver a matéria “O engodo do Belém Porto Futuro”, aqui: https://uruatapera.blogspot.com/2020/08/o-engodo-belem-porto-futuro.html?m=1

Shoppings versus parques: o “novo normal” como o velho consumismo como modo de vida global!

É curioso observar os shoppings de Belém funcionando normalmente, e agora até com as praças de alimentação e bares, e os parques públicos e praias permanecerem fechados.

Em outros países ocorreu exatamente o contrário: shoppings e serviços ditos “não essenciais” ficaram mais tempo fechados; enquanto que, mesmo na fase de pico da pandemia, os parques e espaços verdes (florestas, praias, etc.) permaneceram abertos para que as pessoas pudessem caminhar, tanto que seguindo todos os protocolos necessários (máscaras, distanciamento, número limitado de pessoas em cada espaço, fiscalização permanente de guardas, etc.).

Nesses lugares, a ideia era que as pessoas pudesem caminhar em segurança em ambientes “naturais” controlados. O contato com a natureza nos parques era visto, grosso modo, como mais importante que o consumo e essencial para que as pessoas mantivessem um nível mínimo de saúde física e mental durante o isolamento. Em algumas cidades e países mesmo durante o pico da pandemia e o isolamento mais rigoroso, uma pai/mae com filhos pequenos, por exemplo, podia sair uma vez por dia para caminhar e brincar em praças e parques.

[Vejam bem, aqui não estou falando sobre as pessoas que, infelizmente, precisaram trabalhar no comércio informal/precarizado de Belém (ou de qualquer outra cidade do Brasil) mesmo durante o pico, pois estas pessoas foram abandonadas pelo poder público e/ou pelas empresas empregadoras: a exemplo dos entregadores de Apps, hoje corretamente em greve (greve ocorrida em 01 de julho de 2020). Nem estou questionando a necessidade de funcionamento de pequenos e médios comerciantes, particularmente os de periferia, também totalmente desassistidos pelas políticas públicas. Por fim, também não quero entrar aqui no mérito de dizer quando deveria ou não fechar/abrir o comércio em geral em Belém, pois está muito claro que o Bolsonaro sabotou todas a ações de isolamento no Brasil, dificultando a vida de prefeitos e governadores na fase inicial da pandemia quando a maior parte da população (inclusive em Belém) aceitava o isolamento como única alternativa].

Estou comentando aqui uma questão muito específica, delimitada, que é: de como a cidade de Belém em todos os momentos (nos de “normalidade” aos de pandemia mundial) é uma cidade que tem seu modo de vida global cada vez mais voltado ao mercado e às sociabilidades pela via do consumo.

Isso explica porque, ao se abrirem as atividades e os espaços, primeiro permite-se aqueles caracterizados pelas sociabilidade de mercado (a exemplo do caso da senhora que foi ao shopping pra usar a cadeira de massagem em plena pandemia). E por último deixam abrir os espaços de sociabilidades “públicas” e “gratuitas” de fruição de áreas verdes e/ou praias, por exemplo.

E a justificativa de se evitar aglomeração não convence: pois seja para fechar ou para abrir, nada indica que um parque (Utinga, por exemplo) ou praia, onde protocolos sejam respeitados e haja fiscalização rigorosa, sejam mais ou menos perigosos que um shopping, onde haja também protocolos e fiscalização. Simplesmente, viu-se como essenciais primeiramente os lugares do consumo, muito mais que os espaços públicos verdes. [E dizer que cidade não tem praças ou parques limpos e seguros também não justifica nada, apenas confirma que o poder público nunca prioriza estes lugares].

Seja na “vida normal” ou na eminência da morte, o poder público, agindo no interesse dos grandes do mercado, e mesmo parte da população, prefere liberar primeiro os lugares do consumo ou de fruição da vida por via do consumo. Isso diz muito sobre o nosso modelo (anti) civilizatório, também conhecido como capitalismo periférico, que estava já adoentado muito antes da pandemia chegar e provavelmente continuará assim depois que ela se for (se é que vai…).

Saindo agora apenas do exemplo de Belém e generalizando, observa-se que o paradoxo mais cruel de tudo isso é que o consumo como modo de vida, ou a hegemonia do “modo de vida imperial” (como diria Ulrich Brand), é exatamente o elemento que provocou e continuará a provocarar as crises sócioecológicas causadoras de pandemias, como a atual. Não é à toa que, ainda em plena vigência da atual pandemia, o consumo desenfreado de carne já alerta para a possibilidade de epidemia de nova forma de gripe suina nos próximos anos…

Parece que nossa nova “normalidade” vai em direção ao velho caminho que já estavamos a caminhar: a depredação do meio ambiente por conta do hipercosumismo, o autoconsumo, o com/sumir-se, ou o sumiço coletivo, também conhecido como extinção!

Publicado originalmente em 01 de julho de 2020, no Facebook.

O racismo e o ódio de classe são a “esquizofrenia”?

Neste mundo de maldades não tem mais o inocente. O que tem, isto sim, por todo o lado, é o esperto ao contrário”.

A frase acima é de Estamira Gomes de Sousa, uma mulher negra e pobre, que trabalhou durante décadas em um aterro sanitário no RJ, falecida em 2011. Sua história foi retratada no documentário que tem o seu nome, Estamira, dirigido por Marcos Prado.

Ela era louca, segundo os sabidos em loucura, esquizofrênica! Supostamente!

Mas era tão lúcida, que os memes que ainda hoje circulam sobre ela lhes definem como portadora de uma “lucidez delirante”.

Pois é, tem louco pra tudo. Assim com tem tudo pra todo tipo de louco.

Mesmo o louco, por mais louco que seja, participa em algum nível do processo de comunicação e comunga dos elementos da linguagem coletiva. O louco, por mais delirante que seja, pode potencialmente escolher algo dentro do repertorio ideológico/linguístico pré-existente no mundo dos “normais” que os cercam!

Eis o privilégio dos loucos! Ter a liberdade da loucura, o privilégio de manipular os códigos do mundo “normal” à sua maneira!

O “louco” só pode achar que é Napoleão Bonaparte pois, além de Bonaparte ter existido de fato, as narrativas sobre ele circularam o mundo todo. O “louco” só pode achar que é um viajante do tempo porque a viagem no tempo existiu nas narrativas do cinema, da ciência, das revistas em quadrinho, nas falas de boteco e demais lugares.

Nem um louco é uma ilha! Ninguém delira a partir do nada!

A Estamira, na sua loucura, teria “escolhido” esculachar com os sistemas das normalidades, assim como optou por filosofar, questionar, devanear, dizer frases do tipo:

“Vocês não aprendem na escola. Vocês copiam. Vocês aprendem é com as ocorrências. Eu tenho neto de 2 anos que já sabe disso. Tenho de 2 anos, que ainda não foi à escola copiar hipocrisias e mentiras charlatais”.

***

E por falar em louco, estes dias tivemos um caso de loucura curioso:

Um sujeito de classe média alta, homem branco de 31 anos, após utilizar um serviço de entrega (um APP) começou a xingar o entregador, um jovem de 19 anos, negro e trabalhador. Dentre outras coisas, o agressor disse que o entregador tinha inveja daquele lugar (o bairro de elite onde morava) e de sua pele branca (como sugeriu pelo gesto que fazia com a mão), além de dizer que o entregador ganhava pouco, que era “analfabeto”, que não teria nem onde morar e vários outros tipos de humilhações.

Soube-se que este louco era louco pois, ao se apresentar à delegacia de polícia, seu pai teria apresentado um documento que comprovava que ele fazia acompanhamento para esquizofrenia.  Mesma doença diagnosticada para o caso de Estamira.

***

 Longe de mim questionar a seriedade/gravidade do tema dos “distúrbios mentais” e da esquizofrenia. Esse é um tema sério, importante, e as questões psicológicas e psiquiátricas não são “frescura” e nem “coisas de quem não tem nada pra fazer”, como ouvimos por aí.

Num mundo perfeito todas as pessoas deveriam ter direito a saúde em geral, pública, gratuita, de qualidade e humanizada, inclusive no que diz respeito ao acompanhamento psicológico/psiquiátrico.

Mas sabemos que as coisas não são assim: atendimento psicológico e psiquiátrico é coisa cara no Brasil. Os remédios são caros. Existe incompreensão das famílias em muitos casos. E a população de baixa renda obviamente acaba sendo a menos assistida nessa área da saúde. Quando não são auxiliados de forma inadequada, com uma medicina autoritária, carcerária, pouquíssimo humanizada, como é denunciado à anos pelo Movimento Antimanicomial.

Nesse sentido, até no acesso ao acompanhamento adequado e humano, no caso das questões psicológicas e psiquiátricas, há uma hierarquia entre os loucos!

***

Mas quero voltar a uma oura distinção: de como é curioso como cada louco tem a “possibilidade delirante” de indicar como se expressar a partir do repertório de signos linguísticos/culturais/ideológicos/sociais que o cercam.

Uns loucos acreditam que são o Napoleão Bonaparte.

Outros, que são viajantes no tempo.

Outros, como Estamira, filosofam e questionam o mundo ao redor.

E outros, como o caso do agressor do entregador de APPs, dedicam-se a espezinhar e humilhar trabalhadores precarizados, com xingamentos racistas e ódio de classe contra os pobres. Era sabido na vizinhança do agressor que ele costumava fazer o mesmo com outros entregadores e prestadores de serviço.

Será que este último caso se explica, pelo menos em parte, porque o louco tinha como repertório cultural mais próximo aquele de pertencimento a uma classe/raça que se entende como detentora natural de todos os privilégios existentes, contra o conjunto de pretos/índios/pobres/entregadores de APPs que os incomodam (à classe do agressor) quando não permanecem em “seu devido lugar”? O entregador de APPs deve ter incomodado por não “estar no seu devido lugar”, um bairro de elite e branco.

Por que o agressor não investiu contra o jovem entregador de APPs acusando-o, por exemplo, de ser um viajante no tempo ou um inimigo de Napoleão Bonaparte?

Pois é, nem todo louco é racista, mas tem muito racista delirante por ai! 

Sobretudo em tempos de fascistização da vida cotidiana e política, como se vê pela própria figura do presidente do país, Bolsonaro: um racista, machista, homofóbico, elitista e obscurantista… delirante! (mesmo que agora o presidente apareça fazendo discurso antirracismo pro seu eleitorado ver – mais um delírio, um delírio cínico!).

Eu, na minha loucura (cada um com a sua!), fico a me perguntar se Estamira, a louca, por exemplo, agiria com tamanha arrogância frente a um entregador de APPs, um trabalhador precarizado e sem direitos, como ela mesma foi.

Meu delírio me diz que ele nunca faria isso, pois transmutou sua dor e sofrimento em uma “cultura política delirante” do questionamento crítico das estruturas.

Ora, nem todo louco é crítico e libertário, mas tem muito libertário e crítico… louco… por ai!

Seja como for, acho que Estamira teria uma resposta para todas essas questões que esse último acontecimento, o do racista delirante, nos traz agora.

Ela diria:

“A culpa é do hipócrita, mentiroso, esperto ao contrário. Entendeu? Que joga apedra e esconde a mão!”.

Pois essa é Estamira Gomes de Sousa, portadora de uma maravilhosa lucidez… delirante!

Três breves constatações sobre a prática política das esquerdas

1. Corretamente importantes setores marxistas da esquerda reconheceram seu débito com perspectivas analíticas não exclusivamente “classistas”. Incorporaram as interseccionalidades raça/gênero à classe.

Obviamente que este mérito se deve muito mais aos “novos” movimentos sociais do que propriamente aos marxistas, (ex-)ortodoxos, que a algum tempo incorporaram tais questões em sua maneira de ver o mundo. Ou seja, os movimentos que atualmente difundem as ideias de interseccionalidades (particularmente o feminismo negro) forçaram uma revisão das formas de ver as contradições sociais por parte do conjunto das esquerdas, incluindo aí os marxismos.

Obviamente que isso não é um fenômeno novo, mas pode-se dizer que hoje o “senso comum” do pensamento progressista, e da esquerda de base marxista, já reconhece que sem as interseccionalidades não dá para fazer luta nenhuma. Esse se tornou um ponto comum na gramática das lutas coletivas da última década.

Porém, a meu ver, para todo o pensamento progressista, seja marxista ou não, o ponto fraco das interseccionalidades é ainda um tema que pouco se discute: as regionalidades/localidades. Sobretudo em um país como o Brasil, em suas dimensões geográficas gigantescas e com todas as suas diversidades/desigualdades intraterritoriais.

Nossas interseccionalidades são quase sempre de raça/classe/gênero (já melhoramos muito!), mas pouco raça/classe/gênero/região/localidade. Por isso a Amazônia, por exemplo, quase sempre vai a reboque das demandas da intelectualidade de esquerda sudestina que, como a intelectualidade sudestina em geral, constrói historicamente a ideia de “nação” e de “subversão” a partir do seu local de experiência política.

Na Amazônia, ou no Centro-Oeste etc. as demandas são outras. Ou, melhor dizendo, as mesmas demandas são constituídas de formas diferentes, com peculiaridades que recortam os temas raça/classe/gênero de forma específica. Mantemos um colonialismo interno na prática política da esquerda em vários temas. Isso precisa ser revisto! [Ainda vou falar mais sobre isso nos próximos dias quando tratar em outro poste do tema do “extermínio da juventude” em contexto urbano amazônico. Por hora fica a constatação].

Por fim, talvez pudéssemos incluir ainda a questão da geração ou etariedade. Pelo menos no que diz respeito às formas de ativismo… Pois é visível que muitas das práticas políticas do presente, sobretudo os ativismos virtuais, decorrem de uma postura de “nova geração” (geração 2013?), que ainda não foram totalmente incorporadas pelas antigas gerações de ativistas/militantes. Assim como as novas gerações não incorporaram ao todo a memória e formas de luta dos setores mais antigos (sindicais, partidários, por exemplo).

Daí que o “apartidarismo” ou “antipartidarismo” das “novas” esquerdas não deixa de ser, também, em muitos casos, uma diferença de método fundamentado numa diferença geracional. Muitos dos “novos/novas” não sabem muito bem o que faz um partido político ou um sindicato e nem está muito interessado em saber! Mas esse afastamento também decorre do fato de que a prática antiga (partidária e sindical, mantenho os exemplos) tenha estagnado, envelhecido mesmo, e se burocratizado, impedindo a comunicação com as formas, espaço e práticas de luta do presente.

Esse intervalo geracional impede que os “novos/novas” reconheçam o que foi “bom” do legado dos antigos (partidos e sindicatos) enquanto fazem a crítica correta sobre as práticas envelhecidas e burocratizadas, de um lado. De outro lado, o intervalo geracional impede que os “antigos” se oxigenem tanto em práticas, quanto em espaços e formas de ação política com os “novos”.

Assim, a aparente dicotomia entre ativismo “virtual” versus ativismo “real”, pode ser na verdade uma dupla incompreensão (também geracional) de cada um desses lados sobre o outro; uma vez que todos os espaço são importantes nas suas especificidades e, no final das contas, pertencem ao mesmo mundo de estruturas de poder globais: sejam os espaços políticos “reais” ou virtuais, da rua ou parlamentares, sindicais ou “da quebrada”, “nós por nós”, etc.

Sinais do tempo!

2. Paralelamente, desde o pico da última (e atual) grande crise cíclica do capitalismo (“oficialmente” 2008), que levou a uma reconfiguração da vida política mundial, os cientistas sociais e intelectuais fizeram as pazes com as “estruturas”, particularmente as macroeconômicas. Vejam só, o capitalismo existia então, não era uma ficção. O que é comprovado pela atual espoliação ultraliberal de Guedes/Bolsonaro e Cia.

Bom, mas isso nos leva a um tema importante, que é:

– Se o capitalismo como sistema econômico realmente existe (as estruturas existem, vejam só!) e a sua característica fundamental é (1) a constituição de grupos detentores do capital e (2) grupos vendedores da força de trabalho e excluídos do capital (independente do nome que tenham: proletariado ou uberiariado), a categoria classe volta a ser fundamental. Como sempre foi para o pensamento marxista.

Logo, alguns marxistas não estavam totalmente errados em ressaltar a classe, afinal. Estavam errados em não a relacionar com as demais estruturas: raça/gênero. E todos, marxistas ou não, permanecem com problemas ao não somarem à raça/classe/gênero temas como região/localidade e geração/etariedade, entre outros.

3. A boa síntese desse processo todo seria não perdermos o sentido de totalidade de nossa interpretação/práxis no mundo. A herança de nosso tempo é que, por mais difíceis que as coisas sejam e por mais fragmentárias que as percepções estejam, temos uma grande chance de juntar coisas, muito mais do que de separá-las.

Precisamos, portanto, de novas sínteses!

No capitalismo tudo que é sólido desmancha no ar, já dizia Marx. Cabe às esquerdas (marxistas ou não) (re)construírem as novas sínteses, daquilo que será o novo, sobre as ruínas que se encontram sob nossos pés!

Metamorfoses

Quando certa manhã a modesta barata acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamoforseada num monstruoso Humano. Que susto teve ela que até então não passava de um simplório inseto que durante a vida toda passou os dias a correr pelo chão atrás de migalhas do tempo e da natureza…

De imediato percebeu que seu imenso e estranho corpo não cabia mais no mundo em que vivia. Ao se mover, mesmo que com muito cuidado, esmagou muitos de seus parentes e amigos espalhados pelo chão. De súbito o ex-inseto experimentou a sensação do raciocínio. Começou de imediato a refletir sobre o ser e o não-ser, o devir, o finito e o infinito, a existência ou não de Deus e as possibilidades do mundo da matéria.

Seu primeiro raciocínio foi o da unidade das coisas, o Uno. Discorreu sobre o átomo, o vazio e o movimento. Seria o mundo formado pelas regras da matemática? O úmido ou os números seriam a base de tudo? Refletiu e Refletiu.

Neste intervalo de tempo levantou-se e sentiu asco pelas pequenas coisas. O mundo era seu. As miudezas não lhe interessavam mais. Numa pisada matou pai e mãe! Num rompante, na fração da fração do tempo, comeu seus próprios filhos como se obedecesse a fúria de um titã.

Olhou ao seu redor e estabeleceu seu limite. Urinou na terra e de lá cresceram estacas de madeiras com arames e, mais tarde, grandes muralhas de sete portas, donde sentou em um trono e continuou a refletir! Os que ficaram de fora, os que não tinham morada, se curvaram ao seu poder e foram escravizados!

E a justiça o que seria? Pensou. “É o governo justo e bom sobre os governados”, disse um!

Devorou-o de imediato! Não caberia a um escravo refletir sobre coisas humanas.

“A justiça senhor, é o governo do injusto sobre os homens!”, disse outro!

Refletiu! Explique melhor!

“A justiça é o governo do mais arguto, aquele que se faz parecer bom, mas que por habilidade e arte pratica todo tipo de ação que lhe leve a tomar o poder e a ter ganhos com isso! O incompetente, aquele que é desprovido da arte e do artifício da esperteza e maldade, será o infeliz! Será o governado! Justo é aquele que governa para os amigos e para si e prejudica os inimigos, pois assim se manterá no governo para sempre e desfrutará de todas as benesses daí advindas!”. Disse o subalterno.

Dito isso, o humano, certo de que estava certo, nomeou o discursante seu Polémarkhos, seu senhor da guerra! Constituiu um exército para o caso de necessidade do uso da força, quando a imagem do bom governo não fosse suficiente!

Mas o que seriam os ganhos do governo justo – aquele que governa para os amigos e não para os inimigos, aquele que pensa em si e em seu lucro? Seria a honra, a virtude, a retidão ou a bravura? A honra se evapora no tempo, se esvai com a fumaça, se modifica no contar das histórias – basta termos um bom contador de histórias e a honra se inventa! A virtude é a verdade de quem venceu, o certo de quem acertou, contra o errado de quem perdeu – a virtude é a força! A retidão é o caminho que o forte caminha, é o destino que ele escolher, é a sua linha reta, o caminho que esmaga os caminhos adversários! A bravura é a necessidade de dominar povos e servos – o bravo foi aquele que venceu!

Tudo isso pensou, o monstruoso Humano! E então, depois de muito meditar, escolheu um metal de ouro como prêmio para a ação dos justos! Estabeleceu e criou o precioso metal, o comércio e todas as atividades relacionadas a isso.

Mas a vida parecia vazia e sem forma para a maioria das pessoas. E a terra, mesmo formada por uma imensidão de servos mais ou menos passivos, parecia sem formato. E havia trevas sobre a face do abismo, e muitas vezes o monstruoso Humano se movia sozinho sobre a face das águas, que em algumas situações ameaçava tornar-se turbulenta. Por refletir mais, decidiu criar o templo, onde as coisas se religariam, ou as coisas se ligariam, a alguma outra coisa, que até então faltava e inquietava as mentes! O importante era ligar o que faltava. Ligar a curiosidade humana a algo que lhe saciasse a inquietação – pois a inquietação do governados não é boa para o governo Humano! E essa coisa era o templo!

“Haja o templo”, disse! E houve o templo. E com o templo multidões se formaram. E tantos e tantos outros templos foram erguidos. Onde era antes um imenso deserto, torres imensas foram erguidas, onde várias línguas se descruzavam e se cruzavam novamente. Aqueles que não tinham cercas em suas terras, e que não tinham justiça em sua morada, e que não tinham templo portentoso erguido em sua casa, ou mesmo os que tinham templos bárbaros, foram todos subjugados e escravizados.

Fez-se o Homem, a cerca, a justiça, a guerra, o precioso metal e o templo. O que faltava ao metamorfoseado, monstruoso Humano?

E então caminhando por seu reino imenso, circunspecto e com a testa franzida, pensou nas distâncias dos lugares, no demorar das horas, na vagareza das carroças guiadas a bois, na lentidão das sementes brotando, na desordem dos animais em cio e dos servos em ócio. Pensou na pequenez dos escravos pusilânimes, e no vagar dos dias, e na lentidão das estações, e na excessiva liberdade da natureza, e na rebeldia das mulas que empacavam, e na variabilidade do sol e da lua, que apesar de nascerem e morrerem todos os dias, atrasavam em frações de segundos a cada centena de anos. Em tudo isso ele pensou!

Preocupado e temeroso, o monstruoso Humano meditou por muito tempo, por séculos e séculos, até que chegou a seguinte ideia: construir a máquina!

E a primeira máquina que construiu, foi a máquina de Khronos, que comia o tempo com se engolisse filhos! A máquina que disciplinava mundos e impedia que o tempo fosse gasto de maneira errada e indisciplinada. A máquina que dizia quando o sol deveria nascer e quando a lua deveria clarear a noite! A máquina que dizia quando o galo deveria cantar e quando o servo deveria calar!

A segunda máquina que criou, foi a máquina de fazer coisas, que nada fez além de construir mais do mesmo daquilo que já existia, agilizando o tempo e aumentando a produção. Foi importante para aquele momento e para a história do monstruoso Humano.

A terceira máquina que criou, foi a máquina de fazer máquinas! Ela disciplinava os tempos e os gostos, dava aos humanos as necessidades mais dignas, fazia deles mais do que eles mesmos, os alienava de serem apenas seres humanos! Toda máquina era uma parte dos homens que trabalhavam nela, mas ao mesmo tempo os produtos que de lá saíam eram maiores e melhores que os seres humanos. Essa máquina não só saciou o desejo por coisas, como criou outros desejos de coisas que antes não existiam.

O fruto maior dessas primeiras máquinas, de todas elas juntas, foi o Produto ou Mercadoria, que também era conhecido como Coisa/coisa. Ela era filha da máquina, que por sua vez era filha do homem e da mulher, mas a Coisa/coisa era melhor que os homens e mulheres, pois era o desejo último do ser humano. Guerras se faziam pela mercadoria. Todos e todas as queriam!

E então faltava uma ligação entre o homem e a Coisa/coisa, faltava outro religare, alguma coisa que desse aos servos a sensação de que eles eram tão importantes quando as mercadorias que criavam. O monstruoso metamorfoseado criou, então, a sua última máquina: a máquina de fazer humanocoisas.

O humanocoisa era vendido em peças, algumas mais baratas outras mais caras. Ele aparecia nos jornais e TVs. Em outdoors e revistas. Todos e todas queriam ter e ser humanocoisas. Muitos compravam partes mecânicas e colocavam em seus corpos para se tornarem humanocoisas. Outros vendiam partes de seu corpo para outras pessoas se tornarem humanocoisas. Outros tantos vendiam pessoas inteiras, que eram recortadas, divididas, mutiladas, registradas, carimbadas e vendidas em pedacinhos para as necessidades das máquinas que faziam humanocoisas. Como em qualquer produção existia o mercado consumidor e o mercado fornecedor de matéria-prima, de peças metálicas e humanas; de parafusos e braços e mãos; de chapas de aço ou silicone e peles; cabelos, olhos, pernas, narizes e circuitos e gesso e bisturis; etc.

Foi a fase de maior prosperidade do governo do monstruoso Humano metamorfoseado, especialmente em favor de seus amigos, na prática da justiça Humana. As pragas e as doenças desapareceram. As baratas e outros insetos malditos não mais existiam, ou pelo menos tinham aparentemente desaparecido. As pessoas não mais morriam de águas em sangue; as moléstias causadas por epidemias de rãs desapareceram; homens e mulheres, crianças e velhos ficaram livres de infestações de piolhos; os cadáveres, as comidas, os animais e os miseráveis se tornaram imunes aos zumbidos e a presença de moscas; as sarnas não mais grudavam nas pessoas e nos animais de bem e de estirpe; ninguém mais morria de úlceras; nem mesmo as guerras usavam mais saivadas de fogo que caiam do céu, e as tempestades não mais jorravam granizo que antes perfuravam as cabeças e as casas das pessoas; os gafanhotos não mais amedrontavam os humanos, e muito menos amedrontavam os humanos amigos do monstruoso Humano; os primogênitos das boas famílias não mais morriam e as heranças ficavam com aqueles que praticavam a justiça aos seus amigos e a injustiça a seus inimigos e governados; por fim, as trevas pareciam estar cada vez mais distantes do ser Humano e das pessoas próximas.

Contudo, apesar de toda a aparência de felicidade e de bom governo, alguma coisa em essência estava errada.

Primeiro, o metamorfoseado percebeu contente que cada vez mais a justiça era bem feita, já que cada vez mais o justo governava para seus amigos e não para os inimigos! Mas isso, por sua vez, lhe exigia mais e mais da ação do templo e do exército, para controlar a multidão injustiçada! A multidão dos homens e mulheres injustiçados sempre era maior e sempre crescia mais.

Por fim, o metamorfoseado percebeu que as pessoas estavam cada vez mais felizes com a nova face do humanocoisa. As pessoas tinham novos braços, novas cabeças, novas pernas, novos olhos, e eram assim tão belas na medida exata de que não mais eram elas mesmas! Eram assim tão belas na medida exata de que menos se pareciam com o humano originário…. Nem mesmo o monstruoso Humano metamorfoseado se parecia com ele mesmo, pois que já havia novamente se metamorfoseado num monstruoso HumanoCoisa. E era cada vez mais belo e poderoso, em semelhança inversamente proporcional à sua aparência inicial. Tinha assim novos braços e novas pernas, nova face e novos órgãos. Parte metálicortante, parte em pelecortável: essa era sua nova imagem!

Porém, a contrapeso a tudo isso, existia muitos e muitos humanos/humanos infelizes. Esses eram exatamente a multidão injustiçada. Eram aqueles que não conseguiam ter a máquina que controlava o tempo, nem a máquina que fazia coisas, nem a máquina que fazia máquinas, nem a máquina que fazia humanocoisas. Muitos e muitos estavam frustrados, pois não conseguiam se tornar humanocoisas. Esses eram apenas engrenagem, mas nunca chegavam a ser mercadoria! Essa população infeliz era em número cada vez maior e eram cada vez mais distantes em aparência dos humanocoisa. Animalizavam-se, pois não conseguiam ter a forma do humanocoisa. Permaneciam tristes humano/humanos.

Em verdade existiam também aqueles dentro dessa multidão que conscientemente não queriam ser humanocoisas e preferiam ser o que sempre foram: humano/humanos. Contudo, esse grupo corria contra a corrente, e mesmo organizado não conseguia sequer desanimalizar a maioria humano/humano, que a essa altura já se encontrava embrutecida, frustrada e alienada, cada vez mais fora de si, sem si, sem ser! Por outro lado esses humano/humanos marginais e organizados não conseguiam se opor efetivamente aos poder dos humanocoisas.

Aos poucos se constituiu como verdade oficial que os humano/humanos eram feios, decrépitos, sujos, de dentes pretos e podres, de hálito sujo e fétido. Trajavam roupas sujas e farrapos e andavam no chão se rastejando. Os humano/humanos eram como insetos, eram como ratos, como lesmas, como cobras, como cães sarnentos, representavam tudo o que a Humanidade tinha deixado de ser desde o início da evolução, representavam tudo o que o novo humano, o humanocoisa, governado pelo monstruoso HumanoCoisa, não era mais. Em suma, os humano/humanos eram como havia sido a humanidade no início dos tempos: eram como baratas, que sempre ameaçavam contaminar tudo, varar de todos os lugares, surgir de qualquer brecha do chão, se espalhar no corpo das pessoas limpas, subir nas mesas e comer os banquetes nobres, mesmo sem serem convidadas. Ou ainda eram baratas que a qualquer hora poderiam ocupar o lugar dos humanocoisas, governados pelo metamorfoseado e monstruoso HumanoCoisa. E essa possibilidade fazia o metamorfoseado viver em noites mal dormidas, mesmo sabendo que ele ainda estava no poder…

E foi então que o HumanoCoisa não mais dormia, temendo o pior. E suava a noite, e delirava, e ficava em febre. Olhava ao espelho e não mais se reconhecia. E de seu lado, acima e abaixo, ele não reconhecia mais as pessoas, elas eram diferentes. Não eram mais pessoas, eram coisas! Cada coisa com sua forma, ou com sua deformação. Coisas grandes e pequenas, gordas e magras, baixas e altas, brancas e pretas, com pés e com patas. As pessoas já não falavam, pois de sua boa saia fumaça, fruto da queima de combustíveis e metais pesados. E de seus olhos saiam feixes de luz, como de carros ou jatos avisando que estavam passando em alta velocidade. E de suas narinas cada vez mais pareciam sair jatos de enxofre, ou outra coisa qualquer menos Humana e humana.

Anunciava-se o dia em que o humanocoisa seria totalmente filho da máquina, e essa, por sua vez, não teria pai nem mãe, seria simplesmente a razão das coisas. A máquina seria a razão e a origem de todas as coisas, e as coisas seriam o fim, o objetivo último, seriam o devir de todos e todas!

O Grande Coisa tinha as noites passadas em claro, milhares de dias e dias sem descansar, e mesmo assim, acordado, trazia quilíades de pesadelos que lhe atormentavam. E nem mais o tempo ele conseguia controlar. Perdia as horas! Não mais dominava o dia e nem a noite! Ele apenas girava desconfortavelmente na engrenagem das coisas. Até que em uma noite, não mais podendo dominar o sono e a natureza, ele adormeceu…

E quando certa manhã a coisa acordou de sonhos intranquilos, tenebrosos e reveladores, encontrou-se em sua cama metamoforseado num monstruoso inseto, uma barata imensa e sem fim! Uma barata metálica e que gemia um som de ferro e chamas. E estava tomado por todos os lados por muitas e muitas baratas. Baratas fétidas e sujas, baratas curiosas e barulhentas, baratas com milhares e milhares de bracinhos, que derrubavam as cercas de seu quintal e comiam a comida de sua mesa… As baratas haviam sobrevivido a tudo, mas já não eram baratas, e nem eram humanos, nem eram máquinas, e nem eram coisas…

Tudo havia se metamorfoseado!

Tudo agora era sem forma, tudo agora era deformado, tudo agora flutuava no abismo, e nada mais estava em seu devido lugar, nem a natureza e nem a história…

Publicado em 2012, no MimComigoMesmo!

Considerações intempestivas sobre as vantagens da morte

Em verdade a morte é o grande dia da vida de qualquer pessoa, já que em geral todos os seus erros são perdoados e se ele for uma pessoa pública ou conhecida na sua redondeza vão aparecer depoimentos e depoimentos dizendo que ele foi um bom homem ou uma boa mulher.

De fato, até os inimigos nessas horas costumam chorar sobre o caixão do antigo adversário e proferem discursos voltairianos do tipo: “Não concordo com uma palavra do que dizias, mas defenderia até o último instante seu direito de dizê-la, caso você estivesse vivo. Porém, tendo em vista que você está morto, tanto faz como tanto fez!” (obviamente que essa última parte é falada em silêncio, para que os familiares não percebam!).

Esses depoimentos são apenas uma das vantagens de se estar morto. Outras ainda podem ser citadas. Pois vejamos:

O café! Velório que é bom tem que ter café! E muito café! E baralho também. Na verdade o café acompanha o baralho da mesma forma que as velas acompanham o morto. Sobretudo nos velórios populares que já participei, o baralho é quase tão importante quanto o defunto, e quanto o café. Diria até que muitos jogadores de baralho esperam ansiosamente o vizinho moribundo morrer para garantir pelo menos uma noite inteirinha dedicado ao seu jogo preferido (sem que a sociedade o condene como viciado e vagabundo). Deve-se considerar ainda que a economia de café nas casas da vizinhança do defunto é muito grande nessas 24 horas de velório, o que contribui sobremaneira para o bem estar social!

O piadista é outra coisa que não pode faltar. O piadista é o cara que mesmo estando sofrendo com a morte do defunto, tem o altruísmo de falar coisas engraçadas (às vezes até as peripécias do defunto em vida!). O piadista, poucos sabem, tem um grande papel em nossa sociedade e na vida dos mortos, ou, melhor dizendo, na hora da passagem dessa pra melhor. Ele é um elemento ambivalente, uma espécie de palhaço trágico, que garante que mesmo na hora do sofrimento os entes queridos do defunto consigam rir um pouco, lembrar dos bons momentos da vida com o defunto, e até, quem saber, chegar à conclusão de que na verdade o dito cujo já vai mesmo é muito tarde (isso apenas em casos mais extremos, obviamente!)!

Antigamente também era comum a presença de mulheres carpideiras, que iam pra chorar sobre o caixão do morto. Era muito romântico, mas parece que ficou como uma coisa do passado! Em alguns casos temos também a presença do próprio morto avisando aos entes queridos de que morreu. É o famoso fantasma da alma recém-desencarnada! (aproveito esse espaço e aviso desde já que não farei essa sacanagem com meus amigos e familiares. Ao morrer, caso eu não desapareça por completo, prometo não puxar o pé de ninguém à noite e nem me manifestar como alma penada. Qualquer aviso que tenha pra dar, deixo por escrito aqui neste blog para conhecimento público, antes de morrer).  

É importante considerar ainda que o cidadão em desacordo com a condição de vivo, vulgarmente conhecido como defunto, tem direitos inalienáveis que devem ser garantidos! Falta-nos ainda uma declaração universal dos direitos dos homens e mulheres mortos, mas de certo que entre os direitos e deveres do defunto então a existência de um caixão, um buraco na terra pra ser enterrado, direito a não ser comido (a não ser em casos de acidentes de avião em regiões isoladas e geladas do globo e se forem europeus invasores de terras indo-americanas!), direito a feder, mesmo depois de tomar o último banho, e a apodrecer!

Mas, caros leitores, a essa altura do campeonato vocês devem estar se perguntando por que estou falando de tudo isso? Ocorre que hoje de manhã acordei com a seguinte frase na cabeça: “a morte é em verdade o grande momento da vida de qualquer pessoa!”.

Isso porque além de todas essas sociabilidades que já falei acima, a morte é também a grande chance para, caso exista céu, irmos ao encontro do onipotente, oniciente e onipresente! E caso não exista céu vamos simplesmente deixar de existir.

Ora meus caros, o que a maior parte das pessoas não percebeu ainda é que deixar de existir não é propriamente uma coisa má. Na verdade não é também uma coisa boa. Na verdade não é nada! A não existência não tem cheiro nem sabor, não dói nem dá prazer, não é audível nem é silenciosa, nem quente nem fria, nem doce nem amarga, nem azeda nem salgada, nem chuva nem sol, nem inverno nem verão.

A não existência é simplesmente o que ela não é, ou seja, não é, é nada, em sendo um não ser, o não existir, nada faz ou desfaz, somente é o seu não ser, o que nem sequer se pode definir!

Neste sentido, morrer do ponto de vista da sociedade que cerca o indivíduo morto é um bom negócio, por todas as benesses que já expus (piadistas, elogios ao defunto; sem contar outros temas como o crescimento da economia de caixões e flores, a possibilidade do viúvo ou viúva trocarem de cônjuge, etc.).

E do ponto de vista do morto, ele terá as possibilidades de ir para o céu ou simplesmente deixar de existir.

Não coloquei a categoria inferno ou diabo de chifres e tridente nesse debate, pois acho que esse papo de inferno é contemporaneamente uma invenção de Edir Macedo e Cia. E não vou dar ibope pra esse tipo de gente que dá mais moral para o diabo do que pra Deus! Sem contar que se deus existir mesmo, e se for um cara maneiro, ele vai chegar à conclusão de que foi ele quem colocou a gente nessa enrascada toda, e agirá com justiça e perdoará todo mundo para garantir a paz celestial eterna no paraíso. Bom, mas isso caso deus exista! Eu, de minha parte, ainda sou adepto da tese de que depois que a gente morre viramos “nada” mesmo!

Então meus caros, tendo em vista o exposto, diria que morrer não é tão ruim assim. E defendo a tese de que morrer é o momento mais importante da vida de qualquer cidadão! O que dá a nós, seres vivos, a grande vantagem de um dia deixarmos de existir, em superioridade às pedras, por exemplo, que estão condenadas à eterna existência, em decorrência da ausência da morte!

Essa é, portanto, mais uma vantagem que nós temos, e não uma desvantagem, como pode parecer à primeira vista.

Então, se você é como eu, uma daquelas pessoas que vai morrer algum dia, lhe desejo que aproveite a sua morte da melhor forma possível, pois que eu saiba ela só acontece uma vez na vida, digo, na morte, e por isso mesmo tem que ser valorizada!

Sem mais, nos encontramos por aqui. A não ser que eu, ou um de vocês, morra!

Amém, pra quem é de amém; sarava pra quem é de saravá!