Sobre cidades, maravilhosas ou não.

[Aproveitando que a partir de 01 de janeiro de 2021 Belém será novamente governada por um governo popular, revisito uma crônica de 2015, levemente atualizada, em homenagem a Belém. Na esperança de que tenhamos bons tempos em Breve:]

*****

Nasci em Belém do Pará, mas vivi muitos anos de minha infância e adolescência na pequena cidade de Igarapé-Miri. Desde pequeno sabia onde havia nascido e as histórias sobre aquele lugar acabaram criando uma aura em torno da cidade e a vontade de um dia voltar.

Pequeno, vivendo em uma cidade do interior da Amazônia, onde o meio de informação mais difundido era a televisão, não sabia exatamente o que era Belém. Confundia coisas, misturava mensagens e ícones disseminados no imaginário sobre as cidades do mundo. Não foi à toa que a primeira vez que fui à capital do Pará, ainda pré-adolescente, acreditava que estava indo visitar, finalmente!, a tão falada “cidade maravilhosa”. Talvez eu confundisse o termo “cidade maravilhosa”, normalmente atribuído ao Rio de Janeiro, com outros termos tradicionalmente associados à Belém, como “cidade das mangueiras”, “cidade morena”, “capital da Amazônia”, etc.

Seja como for, naquela primeira viagem, Belém me remetia a uma “cidade maravilhosa”. A imagem efetiva da cidade não poderia ser diferente daquela expectativa. Encostado no parapeito da lateral de um barco que singrava a baia do Guajará, rumo à metrópole, eu via na imensidão das águas pequenos prédios que aos poucos iam se avolumando, em meio ao céu claro e transparente. Tudo coberto de uma profunda claridade. Lembro como se fosse hoje! Uma claridade daquelas que só são entediadas por quem um dia navegou nas baias que cercam Belém e nos grandes rios da Amazônia. Aquela paisagem, mistura do céu com a imensidão de águas, não sei o motivo, mas tem uma luminosidade muito sua, algo quase indescritível.

Eu via Belém da “janela” de um barco e a mim me parecia, como continua a me parecer quando faço essas viagens, uma “cidade maravilhosa”, cercada de rios e mais rios. Essa foi uma das primeiras imagens que tenho de Belém. A ela, outras se somariam.

Alguns anos depois, quando já morava na capital, no período em que fazia o curso universitário na UFPA, percebi uma outra imagem da cidade que até hoje não esqueço, e que marcou muito minha maneira de entender esse mundo. É uma imagem dupla, na verdade, composta por lama e por asfalto. Asfalto em primeiro lugar.

Logo que cheguei ficava muito tempo perdido em distração olhando como o asfalto das avenidas era bem feito. Um asfalto lisinho, negro, robusto, no qual a água da chuva jorrava e deslizava junto à sarjeta. Lembrava do chão do quintal e das ruas de terra ou de asfalto raso  de Igarapé-Miri. Pouco se sabe, mas há uma ciência que explica as formas como a água adere ou escorre sobre um chão de terra ou um chão de asfalto. Até hoje não sei de que imagem gosto mais, se da água escorrendo no chão de terra dos quintais infantis ou da água que deslizava pelo asfalto quente de Belém nos dias de chuvas torrenciais.

A segunda metade da imagem está obrigatoriamente associada ao asfalto, mas é o seu oposto, é a sua ausência. É a cidade-lama, a cidade alagamento, a cidade margeada, marginal! Ao mesmo tempo em que descobria o asfalto, descobria uma rota que me fazia visualizar Belém pelas suas margens. Todo os dias eu ia para a universidade e meu ônibus, Cremação alguma coisa, circulava praticamente por toda a “Estada Nova”, Av. Barnardo Saião.

Como morava no bairro do Jurunas, nessa época, depois de passar um curto período de menos de um ano no Marco, e ia para a UFPA, que fica no Guamá, meu ônibus fazia uma reta. Para quem não conhece Belém vai aqui uma rápida explicação. A Av. Bernardo Saião é uma estreita rua que segue a margem da cidade na parte sul. Ela acompanha a margem do rio Guamá, porém na maior parte do caminho esse rio não é visto, já que existem milhares de casas, além de empresas, portos, feiras, que ocupam a margem do rio. A rua atravessa a região mais populosa de Belém, bairros de grande riqueza cultural e social, mas também muito pobres, como o Jurunas, a Condor e o Guamá. É literalmente uma rua marginal, em todos os sentidos.

Indo e vindo da universidade, fazia esse caminho olhando uma paisagem que se revelava mais e mais a cada dia. Os detalhes se ampliavam: casinhas de madeira penduradas sobre o canal que segue a avenida; campos de futebol de várzea; bares e bares e mais bares; feiras e portos; crianças correndo atrás de papagaios e pipas, passando pela frente dos carros, serelepes, sem medo; carros e caminhões descarregando nas feiras do Jurunas, no Porto da Palha, indo e vindo apressados; propagandas sonoras automotivas e faixas coloridas penduradas nos postes de iluminação e nos fios elétricos, anunciando as festa de aparelhagem e os bares mais populares daqueles bairros; caixas de som em alto volume na frente de casas, em bares, lojinhas, em biroscas que vendiam peixe frito e açaí; palafitas e mais palafitas penduradas sobre os canais; vielas que desapareciam serpentiando, a partir da avenida, e formavam caminhos labirínticos bairro  adentro; carros de mão puxados por vendedores de frutas, vendedores de coxinha e suco, carroças puxadas por animais levando madeira; indígenas, caboclos, negros e mestiços desembarcado nos portos e chegando na cidade depois de atravessar a baia do Marajó, ou vindos de cidades pequenas próximas a Belém, como Igarapé-Miri, Cametá, Barcarena, Abaetetuba e tantas outras; camelôs e todos os tipos de vendedores de todos os tipos de coisas; e outras infinidades de imagens, cores, sons, cheiros e vida.

Porém o que mais me chamava atenção nessas viagens diárias era ver a cidade, mais uma vez, da margem para o centro. Em determinado espaço da avenida, o ônibus cruzava uma parte grande e descampada, ainda no Jurunas. Lá, sem as casinhas de madeira que ficavam quase tocando nos ônibus, de tão próximas que eram da rua, era possível um olhar mais recuado. A vista partia da avenida, da janela de um coletivo, e rumava para o centro de Belém. A cidade se revelava em camadas. Apesar de estar na periferia eu podia ver quase toda a cidade de lá, pois o horizonte, por algumas minutos, se abria ao observador. Via muitas Beléns.

Via aquela cidade já narrada acima, e outra um pouco mais distante: a cidade de prédios altos. No horizonte, enquanto o ônibus corria, podia confrontar a parte enlameada, alagável e pobre da margem da Barnardo Saião, que se movia rápido, com a parte distante, formada de prédios bonitos que quase não se moviam com o correr do ônibus. Centro e periferia não se comunicavam, pareciam próximos, mas estavam distantes milhares e milhares de quilômetros e milhares e milhares anos. Eram na verdade dois mundos de uma mesma cidade. Uma cidade, que vista em perspectiva, já não parecia tão maravilhosa assim.

A maior parte de minha vida em Belém passei nesta margem. Morei um curto período no Jurunas, depois passei a morar na Terra Firme. Como frequentava a maior universidade de Belém, que ficava na beira do rio Guamá, fiz muitas vezes, também, o percurso à pé, da Terra Firme à UFPA. Via aí a continuação do que seria a Bernardo Saião, já com o nome de Avenida Perimetral. A paisagem era a mesma.

Eu não sabia ainda, mas passaria muitos anos olhando a cidade das margens e tentando entendê-la melhor. Tornei-me um flâneur dessa periferia. Mesmo quando circulava pelo centro de Belém, meu olhar era enraizado nas margens e a partir dela é que passei a ver todo o resto; fossem as maravilhas, fossem as misérias urbanas. 

Carta-Manifesto de Movimentos e Coletivos de Educação Popular com propostas para a política de educação popular em Belém e as celebrações em torno do centenário de Paulo Freire

A eleição de Edmilson Rodrigues (PSOL) e Edilson Moura (PT) para a Prefeitura de Belém, no quadriênio 2021-2024, expressou a força das lutas populares em defesa de um programa de sociedade e de educação transformador, inclusivo, popular e democrático.

Após décadas de descaso com a escola pública e o direito à educação, a vitória da Frente “Belém de Novas Ideias” traz esperança em dias melhores para as cidadãs e os cidadãos de Belém, o que envolve, centralmente, a luta contra a mercantilização do ensino, e a defesa radical dos direitos humanos, da justiça social e ambiental e da educação popular.

A presente Carta-Manifesto, construída coletiva e participativamente por mais de 50 movimentos e coletivos signatários, apresenta aos Poderes Executivo e Legislativo, bem como à sociedade paraense, de forma mais geral, propostas em torno de uma Política de Educação Popular para Belém, além de pautar as celebrações em torno do Centenário de Natalício de Paulo Freire, em 2021.

O ano de 2021 será marcado pelo Centenário de Paulo Freire em todo o mundo. No Brasil, terra natal do nosso Patrono da Educação, centenas de iniciativas estão em andamento para valorização, estudo e implementação das ideias político-pedagógicas progressistas e libertadoras de Paulo Freire. Consideramos que Belém, além de Cidade Educadora, Alfabetizada e Alfabetizadora, Capital da Resistência Amazônica, também pode entrar para a história como Cidade do Esperançar Freireano!

Confira a íntegra da Carta-Manifesto e os coletivos e movimentos signatários neste link:


https://drive.google.com/file/d/1wFQsRRi_loGvH6HCxhVHCdQZPyOfk0G2/view

Leituras compartilhadas… Paulo Freire e o “privilégio” dos opressores.

“Em verdade, instaurada uma situação de violência, de opressão, ela gera toda uma forma de ser e comportar-se nos que estão envolvidos nela. Nos opressores e nos oprimidos. Uns e outros, porque concretamente banhados nesta situação, refletem a opressão que os marca” (Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido, 1970 ).

“Esta violência, como um processo, passa de geração a geração de opressores, que se vão fazendo legatários dela e formando-se no seu clima geral. Este clima cria nos opressores uma consciência fortemente possessiva. Possessiva do mundo e dos homens. Fora da posse direta, concreta, material, do mundo e dos homens, os opressores não se podem entender a si mesmos. Não podem ser. Deles como consciências necrófilas, diria Fromm que, sem esta posse, “perderiam el contacto con el mundo”. Daí que tendam a transformar tudo o que os cerca em objetos de seu domínio. A terra, os bens, a produção, a criação dos homens, os homens mesmos, o tempo em que estão os homens, tudo se reduz a objeto de seu comando” (Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido, 1970 ).

“Por isto é que, para os opressores, o que vale é ter mais e cada vez mais, à custa, inclusive, do ter menos ou do nada ter dos oprimidos. Ser, para eles, é ter e ter como classe que tem (Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido, 1970).

Paulo Freire em 1970, em Pedagogia do Oprimido, já descrevia o processo de posição defensiva do opressor ao perder ou ter seus privilégios ameaçados. E de como o privilégio constitui uma cultura, aquilo que muitos marxistas chamariam de “modo de vida global”, que inclusive afeta também as consciências dos sem privilégios, dos oprimidos.

Afeta a todos, já que é estrutural, como o é o racismo, o machismo, a heteronormatividade excludente, etc. [diriamos hoje].

De fato, há vários elementos interessantes nos três fragmentos de Freire, citados no início deste poste. Vejamos:

  1. Traz consigo uma visão global do mundo, ou o mundo como totalidade. Algo comum em algumas vertentes do marxismo, por exemplo. Modo de vida global, totalidade, dialética entre aspectos culturais e modo de ação, ou a própria práxis que constitui a totalidade da vida social.
  2. Tem uma visão da cultura que se diferencia da tendencia “interpretativa”, digamos, da antropologia cultural. É uma visão antropo (do homem/mulher) como totalidade, não apenas como signo ou linguagem. Importante refletir que Freire escreve este livro antes da voga do giro linguístico ou pós-modernismo.
  3. Por fim, há uma clara sociologização do fenômeno da cultura, por isso podemos pensá-la como ethos ou habitus.

É uma visão verdadeiramente dialética e sofisticada daquilo que hoje muito se dicute como “privilégios”. Mais uma vez Paulo Freire se mostra um autor atual, imprescindível.

A polícia e o “Velho da Havan”

O “Velho da Havan” foi autuado por infringir as regras de controle da propagação do coronavírus na cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul.

No aeroporto da cidade, sem máscara, cercados por policiais, foi chamado a assinar a autuação, mas teve muito tempo para gravar e transmitir ao vivo o acontecimento; o que é, na verdade, um direito seu [de gravar a ação de agentes públicos].

Mas, apesar de ter esse direito de gravar a ação da polícia, chama a atenção a liberdade que teve para deixar os policiais esperando vários e vários minutos enquanto gesticula e falava livremente olhando para as “câmaras”.

Parecia que estava em seu próprio reality show e a PM seguia todas as ordens do “apresentador” do programa:

– Ele dava as costas para os policiais, falava com as câmeras, girava pra lá e pra cá, ria e fazia chacota da ação policial, respondia aos “telespectadores” aparentemente ao vivo, falava minutos seguidos enquanto os PMs esperavam sua assinatura com os papeis na mão. O “Velho” chegou até a colocar o dedo em riste no roto de um dos policiais.

Os PMs só faltaram falar “Seu Dotô, assina aqui por favor”!

Que polícia “paciente”, não é!

Mas atenção: se você for pobre, preto, indígena e periférico não repita isso em sua quebrada. Esse tipo de docilidade e subserviência a polícia só tem com “Velhos da Havan” ou moradores de condomínios de luxo!

Na periferia é policial pobre contra população pobre, ambos vitimados pelo mesmo sistema que os brutaliza e os mata!

Enquanto ao “Velho da Havan”, não se preocupem, na mesma hora ele voltou pra sua casa em total segurança e conforto… em seu jatinho particular!

PS. 1: Aqui não se trata de defender que a polícia agisse com violência ou reprimisse os direitos de qualquer cidadão (incluindo aí o sujeito abjeto conhecido por “Velho da Havan”). Trata-se de uma constatação obvia, uma denúncia, de que em sociedades de classes, na qual o Estado representa os interesses dos poderosos, a polícia tende a agir de forma subserviente a esses mesmos poderosos. Diferente da forma que age frente à população marginalizada, que tem cotidianamente seus direitos desrespeitados e é vítima da violência física das forças repressivas do Estado.

PS. 2: Importante reconhecer e denunciar que os policiais, sobretudo os policiais de baixa patente, são também vítimas desse sistema. Despreparados e mal pagos, humilhados por uma elite militar formada quase sempre por pessoas de classes “superiores”, moradores da periferia, jogados como bucha de canhão na “guerra às drogas” e brutalizados por uma ideologia punitivista, acabam, sem o perceber, sendo os “capitães do mato” que fazem o serviço de controle dos pobres e extermínio dos que não se conformam.

Belém, a expectativa e a esperança.

Em relação às eleições municipais no Brasil, ainda estamos tentando compreender várias coisas, que não me arrisco a responder, mas vou citá-las:

– Se realmente o PT perdeu força em termos permanentes ou se, associado a isso, o lulismo ainda é a bola da vez, num contexto de aparecimento/consolidação de novas lideranças “médias” como Boulos e Manuela…

 – Se o PSOL a médio e longo prazo vai substituir o PT, dentro de novos grupos de tendência mais à esquerda…

– Ou ainda, se o Bolsonaro vai virar suco e o bolsonarismo vai se pulverizar mais cedo ou mais tarde na tendência de fortalecimento dos partidos e grupos de centro e centro direita…

O caso de Belém do Pará pode ser interessante para pensarmos mais em complexidades do que em respostas acabadas.

– Do ponto de vista das classes sociais distribuídas no espaço urbano, como mostraram Saint-Clair Trindade Jr. e Estêvão José Barbosa, ficou mais ou menos claro que os setores populares não aceitaram o discurso elitista e de defesa descarada do mercado feitas pelo candidato bolsonarista de fato, o Delegado Federal Eguchi (Patriotas).

A cidade periférica, a hipermargem, das “baixadas”, sobretudo os bairros de periferia mais antiga como Guamá, Jurunas, Terra Firme e Tapanã/Icoaraci etc. tenderam a votar no candidato do PSOL, Edmilson Rodrigues. E os bairros de centro, tais como Marco, Nazaré, Umarizal etc. tenderam a votar no candidato de extrema-direita.

Porém, essa divisão mostra apenas uma tendência geral, que carece de maior aprofundamento analítico, como deixam evidente os próprios autores que citei acima.

Se entrarmos nesses bairros da periferia de Belém, onde habita a maior parte da população, o que provavelmente veremos é uma disputa acentuada, com muitas variáveis que teremos que refletir por muito tempo ainda. Dessas, quero colocar algumas rápidas questões:

1. Todos os bairros de periferia têm forte presença evangélica, tanto onde a esquerda ganhou quanto nas áreas que perdeu. Na Terra Firme, por exemplo, onde Edmilson ganhou, há quase uma igreja neopentecostal em cada esquina.

Não podemos partir do princípio apriorístico que diz que os evangélicos votam necessariamente na direita. Muitos evangélicos, inclusive, declararam voto em Edmilson nessas eleições.

Porém, eis a questão: as igrejas evangélicas são hoje na periferia de Belém o que foram antes os clubes de mães, as comunidades de base, os centros comunitários, os sindicatos, os espaços de sociabilidade de jovens, territórios onde o sentimento comunitário (de pertencimento) mantém-se vivo em bairros de extrema desigualdade e violência. Claro que elas não são as únicas entidades a desempenharem esse papel, mas o desempenham cada vez mais, concorrendo com outras formas de sociabilidade popular e com os movimentos sociais “tradicionais”.

Essas igrejas são, portanto, o próprio “movimento do social” nesses bairros, num contexto de crise de representatividade política, desemprego e subemprego, violência urbana e ataque ideológico sistemático a qualquer tradição política que se associe à “esquerda” etc. 

Apesar da importância política crescente desse setor religioso, ele continua sendo um completo desconhecido para a maior parte da militância de esquerda.

2. Toda a periferia de Belém vive a utopia da redenção por via do mercado e do consumo.

Essa utopia foi e está sendo disseminada pelos meios de comunicação de massa a décadas e nos últimos anos tem se fortalecido pela ideia do empreendedorismo popular ou neoliberalismo popular. A ideia de que qualquer pessoa que “trabalhe duro”, que seja um “empreendedor” (em oposição aos “vagabundos” ou aqueles que “dependem do Estado”) vai se dar bem na vida.

Conversei muito com ubers e trabalhadores informais durante as eleições e posso dizer que esse é um discurso corrente e muito forte.

Não é à toa que, mesmo que o delegado tenha perdido a eleição, muitas pessoas da periferia de Belém votaram no seu projeto de administração “empresarial” da cidade. Não foi uma vitória folgada e nem podemos dizer que mostra uma tendência consolidada até 2022 (em se tratando estritamente a termos eleitorais).

3. As novas sociabilidades populares do mundo virtual, configuradas nas comunidades de bairros, de times de futebol, de família, etc. no WhatsApp ou Facebook.

Muito militantes que adentraram aos grupos de bairro nas redes sociais, para ganhar votos nas eleições, perceberam que lá existe um mundo à parte (fora da bolha). Discursos de ódio e soluções de força têm ampla aceitação nas culturas populares periféricas (“bandido bom é bandido morto”, “delegado X ladrão”, “esquerdopatas” e “vagabundos” etc.).

É possível sugerir que esses discurso de ódio e de soluções de força atuais encontrem eco nas antigas estruturas de “justiça popular”, de linchamentos públicos, de fazer a justiça pelas próprias mãos, em resolver logo as coisas sem esperar uma justiça que nunca chega aos pobres, etc.

Essas estruturas se fortalecem reciprocamente em uma sociedade despedaçada, sem saídas coletivas, desconfiada dos políticos, com pessoas que vivem na rua, na informalidade, de transporte público precário, vitimada pela pandemia, sem perspectivas utópicas para além de um “Deus” vingativo e justiceiro e da utopia de ascensão individual por via mercado etc. 

No que diz respeito a esta questão, é importante que se diga que se trata não apenas “dos meios”, mas “das mediações”. Os “novos” meios apenas amplificam e aceleram a circulação de visões de mundo conservadoras antigas, somadas às ideologias de força, discursos religiosos e discursos de ódio, todos estes trepidados e sacudidos pela crise global que gera medo, desesperança e desespero universalmente.

4. A crise é maior que os ganhos meramente eleitorais locais.

Parece haver um consenso nas análises da esquerda sobre os motivos, digamos, fundamentais da adesão às soluções de força e violência para resolver os problemas sociais dentro do capitalismo:

– Os projetos de força, geralmente auto caracterizados como outsiders, fascistas ou neofascistas, surgem da crise generalizada, fundamentalmente a crise econômica aguda (a crise do próprio sistema) associada a crises na representação política burguesa liberal. Contemporaneamente essas crises ainda se complexificam pela sua proporção civilizatória e ambiental, e também pela existência de “novos” e “velozes” meios de informação, como a internet, as redes sociais etc.

Fato é que na crise do próprio capitalismo os capitalistas não querem perder a margem de lucro e por isso propõem como solução a superexploração do trabalho. Soma-se a isso o fato de os governos, sobretudo os periféricos, também não quererem/poderem manter certos benefícios sociais (aquelas migalhas que o sistema deixa cair sobre os mais pobres), pressionados pelos próprios capitalistas.

O resultado da crise é mais crise: cada um por si e o Deus-Mercado contra todos.

Daí aparece um Trump ou Bolsonaro da vida, diz que vai fazer e acontecer e na verdade beneficia mais ainda os de cima, criando mais e mais desesperança.

Esse é o pano de fundo estrutural, no qual Belém está imersa, como periferia da periferia, como margem da margem. Inclusive margem da margem frente às geopolíticas nacionais e o colonialismo interno, inclusive o colonialismo interno das esquerdas sudestinas difusoras de projetos de nação que quase nunca consideram as especificidades locais e regionais (da Amazônia, por exemplo).

E qual é a alternativa em termos estruturais que a esquerda apresenta? Qual a alternativa em termos de novo comunitarismo e economia moral e justiça popular que a esquerda deu e dá a essa ampla parcela da população das margens de Belém e do Brasil?

Certamente os anos de burocratização e parlamentarização das lutas da esquerda não ajudaram em nada para mudar esse cenário. A esquerda parlamentar e eleitoral é um Outro declarado do povo das periferias. Nesse aspecto, diga-se de passagem, Edmilson Rodrigues é realmente uma exceção.

A esquerda, grosso modo, perdeu espaço no “movimento do social”, e esse espaço foi ocupado por aquilo que descrevi acima, dentre outras coisas.

Como nada surge fora de uma materialidade, de uma concretude em termos amplos, e a concretude não se limita (unicamente) a eleições, mas a ser/estar junto nas luta sociais, a eleição de Edmilson (que é um alívio dentro do caos generalizado)  mostra apenas que estamos muito atrasados em ser uma alternativa para as pessoas. Inclusive e fundamentalmente por isso significar uma instância eleitoral dentro do espaço do Estado burguês.

Fato é que enquanto houver crise (e ela vai permanecer) haverá o risco de que os sujeitos e sujeiras frustrados, fraturados e atomizados busquem soluções de força, sejas elas um bolsonarismo com Bolsonaro ou um bolsonarismo sem ele.

Nesse sentido Belém será importante e emblemática às lutas seguintes não só pelo fato de que terá uma administração municipal de esquerda a partir de 2021 (num contexto totalmente desfavorável em termos nacionais), mas também porque esta cidade terá que comprovar na prática de seus administradores e militantes e dos movimentos sociais se é ou não possível, a curto, médio e/ou longo prazo (?), estabelecer conexões para além do eleitoral com a vida prática dos trabalhadores e trabalhadoras da periferia de Belém.

Se será viável e possível amortecer/atrasar a crise e o desespero das pessoas evitando, mesmo que temporariamente, a tentação às soluções de força em escala local. Ou se é possível à esquerda (com mas também para além do governo executivo municipal) reconectar com esse mundo das margens. O mundo dos sujeitos e sujeitas atomizados, fragmentados, fraturados, temerosos mas que, apesar disso tudo, lançou um fagulha de esperança.

A crise continua. O povo está faminto, desesperançado e desesperado!

E quem tem fome e desespero, tem pressa!