Carta a um defunto amigo

Caro amigo morto que hora jaz em sua marmórea morada, hoje senti deveras tua falta.

Senti falta de nossos tempos de meninice, donde nos preocupávamos apenas com o horário que a campainha da escola tocaria, na hora do recreio, e poderíamos correr livremente pelos corredores cheios de crianças. Lembrei que tínhamos a habilidade de poucos de chegar primeiro à fila de distribuição da merenda. Tu sempre bem mais rápido que eu, é verdade, muitas vezes foste o primeiro a apanhar o lanche.

Fiquei saudoso e quase chorei dia desses ao me lembrar de nossa adolescência. Junto com a rapaziada, todos com 14, 15, 16 anos de idade, íamos a bando (todo mundo andava em bandos nesta época) para os igarapés da cidade. Nossa condução eram as bicicletas que sofriam como nossas molecagens pueris.

Fiquei horas lembrando essas coisas.

Lembrei ainda do dia que deixei minha casa em Igarapé-Miri, no interior do estado, pra vir morar em Belém… Lembrei que nesta época a casa estava em reformas, e eu, com meus 16 ou 17 anos de idade, olhei pela última vez o quintal que tantas vezes brinquei. Lembro como se fosse hoje este dia.

A parte de trás da casa estava desmontada, a madeira deitada ao chão, às 18 horas o sol já se despedia e as arvores grandes do quintal davam um ar de filme (aqueles filmes de terror donde o bosque guarda sempre mais coisas do que podemos pensar…). Foi neste momento que olhei pela última vez meu quintal e iniciei minha jornada para Belém, a capital, pra conhecer outras pessoas e outras experiências que eu não tinha. Depois fiz outras tantas viagens (mas essas são pra outro momento)…

Hoje, meu caro e defunto amigo, olho para trás e vejo que perdi muita coisa, inclusive a ti. Fico pensando como será a frialdade da terra onde habitas, imagino qual a relação que estabeleceste e ainda estabeleces com os vermes que te roem a carne e te lambem os ossos, o que pensas da outrora dura, e agora podre, madeira que te abriga, tens vontade de sair, de voltar a viver…? São coisas que não sei e não saberei tão cedo.

Quanto a mim, mudei muito. Nosso tempo de infância e adolescência ficou pra trás. Meus horizontes mudaram bastante e, como não pretendo morrer tão cedo – já que tenho, como todos têm, uma relação de amor e ódio com a vida -, sinto que não te verei tão breve, por isso mantenho contato por esta correspondência. Espero que possas responder em um sonho, qualquer dia desses.

E por falar em sonho, inerte amigo, tive um sonho estranho dia desses e não consigo tirá-lo de minha cabeça. Sonhei que estava dormindo (no sonho eu estava dormindo) e acordava com uma estranha coceira no dedo indicador da mão direita. Acordava e coçava o dedo, como a coceira não passava, olhava pra ver o que ocorria. Pra minha surpresa via uma nódoa verde na ponta do dedo, na região anterior à unha e neste mancha surgia um pequeno gramado, como um gramado de campo de futebol, com uma grama bem pequenina, mas de raiz profunda e de fina ramagem. Acordei-me de súbito (acordei de verdade, fora do sonho) e o dedo indicador ainda coçava, assim como doía um pouco. Não consegui dormir mais a noite toda e todos os dias medito se terá de fato um gramado nascendo de minha carne.

Temo esta possibilidade!

Caro amigo, não sei o que isso significa. Nunca fui dado a adivinhar sonhos. Talvez tu daí do mundo dos mortos possas me dizer algo sobre isso algum dia desses. De resto, vou levando a vida. Convivendo e falando com pessoas vivas todos os dias e tendo sonhos estranhos todas as noites.

Por fim, espero que estejas bem em teu funéreo descanso, pois que aqui na terra as coisas andam como sempre, às vezes melhores, às vezes piores, às vezes quente, às vezes frio, etc.

Despeço-me por hora, não tenho muito mais o que te dizer, não hoje. Nós falaremos em outros sonhos ou em outras cartas.

Até logo.

Chegamos primeiro… apesar de desacompanhados…

A Bolívia, com todas as suas contradições e as muitas contradições do MAS, não pode reclamar da falta de base social que lhe garantiu uma vitória eleitoral pós-golpe. [Resta saber se vai sustentar. Tomara que sim!].

O Brasil, por sua vez, também não pode reclamar pois o tem até em excesso. Excesso não de bases mas de vanguardas: “vanguardas revolucionárias”, “vanguardas performativas”, “intelectualidade orgânica ‘universitária’ de vanguarda”, “vanguardas eleitorais” e “vanguardas virtuais”.

Esse estado de coisas, algumas delas bastante coisificadas, há de nós levar além, muito além!

No mundo virtual, por exemplo, já até chegamos, faz tempo, ao paraíso.

Inclusive chegamos primeiro… apesar de desacompanhados…

O duro trabalho da imagem da felicidade.

Uma das coisas mais trágicas das redes sociais, particularmente naquelas especializadas na imagem, é a cobrança permanente que elas fazem às pessoas para que “apareçam”, sejam vistas e vejam, permanentemente, quase que com única forma de existir (pelo menos no mundo virtual).

Não há existência sem imagem, autoimagem, projeção da imagem, a imagem alheira, a imagem do que se é, do que se quer ser, do que se imagina que se é, do que se busca ser, do que se projeta como vontade de ser mesmo que não se seja. Daí que deve ser muito cansativo, estafante mesmo, todos os dias parecer ser alguma coisa, seja lá qualquer coisa que se seja.

Existe um esgotamento físico e emocional, um gastamento permanente de energia de vida, todo santo dia parecer ser qualquer coisa: um sorriso, um relaxar-se na praia, uma divertir-se num bar com amigos, um estar concentrado lendo um livro, um estar contemplando uma paisagem, uma imagem de si assistindo a uma maratona de séries no fim de semana, uma imagem de si acariciando um cachorrinho, dentro da piscina, viajando, comendo, dormindo, acordando, entediado, animado, amando, sendo amado, de óculos, de lente, de cabelo arrumado, de cabelo bagunçado, de azul, nu, bocejando, comendo um sorvete, rindo, iluminado pelo sol, em lugares de paisagem fantástica, em lugares cotidianos, em pé, sentado, rindo, feliz, comendo um pão com manteiga, sarado, lacrador, “naturalmente” feliz, relaxado, fumando um cigarro, fazendo caridade, militando, sendo exemplar em suas posturas, sendo bonito, sendo bonita “sem nem sequer perceber” que é, de boas, treinando, lendo um filósofo qualquer, no clube, no shopping, na faculdade, na padaria, na pia, no avião…

Deve ser muito difícil, muito difícil mesmo, ser tanta coisa, tudo isso junto ou parte disso, todos os dias. Não porque não façamos tudo isso ou parte disso todos os dias, mas porque fazer coisas é algo natural que fazemos o tempo todo, queiramos ou não, gostemos ou não, estejamos felizes ou não. Porém parecer fazer (faça-se ou não) qualquer coisa que seja é um gasto de energia emocional, corporal, espiritual que nos corrói.

O ângulo tem que ser assim e assado, a paisagem tem que se adaptar, a luz, a profundidade, as cores, as crianças têm sorrir, o cachorro tem que colaborar, o gato não pode arranhar, o sol da praia tem que brilhar naquele instante, a bandeira da pátria ou do partido tem que balançar de maneira correta, a chuva tem que ser viçosa, a flor florida, a água cristalina, as coisas tem que parecer serem coisas e as pessoas devem parecerem pessoas… Tudo tem que se enquadrar.

Aquela imagem de felicidade que foi postada, na verdade é a 10ª de uma série de imagens que não ficaram boas. A 15ª, a 20ª. Fruto do duro e cansativo trabalho de parecer ser, independente do que se seja.

Não é como olhar no espelho. Esse papo de que Narciso acha feio o que não é espelho é cosa do passado.

Ninguém quer mais o espelho. O espelho é solitário, é privado, é melancólico, é o sujeito encarando a si mesmo, sem que haja a aparência para ninguém mais, a não ser à própria pessoa que olha para si mesma. O que importa olhar-se no espelho, esteja você feliz ou triste, quem vai ver, além de você mesmo? O espelho é para chorar, não para ser feliz! Não para aparecer.

O fato é que se faz um esforço permanente e desgastante para garantir o mundo da aparência, a parescência, a hiperimageticidade, a imagem de si, a imagem da imagem, a imagem que seja vista, que apareça, para que possa existir.

Daí que as pessoas buscam as fotos do agora, os #tbts, as fotos dos outros, as fotos dos outros consigo, as fotos do amigo consigo, do cachorro consigo, da paia consigo e todas as projeções possíveis da imagem, a imagem e a imagem.

No final do dia, alguém que tenha conseguido ser imageticamente popular e feliz há de permanecer, quem sabe, feliz para si mesmo, para além da imagem de felicidade que tenha projetado. Mas terá um novo e duro trabalho no dia seguinte, para manter-se como tal. Pois não basta sermos felizes, temos que parecer sermos felizes. E não basta parecermos felizes, temos que parecermos felizes todos os dias, sob o risco de desaparecermos. Não se pode perder tempo. Tempo é imagem! Para alguns imagem é dinheiro, para outros é consumo, e para muitos mais é um atraso ao aberto domínio do desespero, ao desaparecimento, a desexistência, a desistência.

Aquela outra pessoa que hoje não foi bem sucedida na elaboração da imagem de sua felicidade também dormirá esgotada, cansada, pelo duro trabalho. E estará ainda mais ciente de que no outro dia terá novo trabalho para parecer feliz e por consequência, talvez, ser feliz (mesmo que não seja). Um trabalho maior ainda do que o daquelas pessoas que pareceram a todos muito felizes (independentemente se foram ou não, isso, inclusive nem interessa).

Amanhã o trabalho vai ser dobrado, triplicado, quadruplicado.

Todos os dias são dias para parecer ser, seja lá o for.

No final, todos estarão exaustos. Uns mais, uns menos. Uns parecendo exaustos outros parecendo felizes, mas todos parecendo alguma coisa.  

Todos estarão cansados e a vida segue.

Amanhã tudo recomeça: parecer é existir e só existe quem aparece… até que se perceba que não se é mais, ou nunca se foi, aquilo que se imaginava ser, para além da aparência. E que, de tanta excessiva parescência, nem se sabe mais ser o que se é e o que se fora em algum momento da vida.  

Cervejas no canal fétido, loja da Havan e a avatarização/coisificação da vida

Há muitas coisas em comum entre a cena, amplamente memificada mas agora esquecida, da população colhendo caixas de cerveja de dentro da lama fétida e poluída de um canal na periferia de Belém e a cena da população aglomerada, se espremendo, um formigueiro humano, para entrar na loja da Havan que estava inaugurando na mesma cidade.

Na primeira cena, o povo já é o próprio alimento da mercadoria que pretende consumir. É o alcoolismo do capitalismo predador que se embebeda do povo e não o contrário. O sujeito imerso na lama, catando cerveja, busca (re)apropriar-se de uma essência que não mais tem pois já foi a tempos embriagado/alienado do seu devir. “Expropriar” cervejas de um caminhão tombado na vala é a ação mais “potente” que a ruína de sua radicalidade como ser humano ainda pode realizar. O Robin Hood bêbado, o humano-ruína, “expropria” o fornecedor de cerveja para não sustentar o dono do boteco da periferia. Seu prêmio é a embriagues, na verdade o sonambulismo, do próximo final de semana e as narrativas sobre o fantástico ato de mergulhar na poluição e na merda da cidade que o periferizou, a cidade que sobre ele ri!

A segunda cena é mais “higienizada”. É a do povo que ainda acredita não estar atolado nos desejos das valas da cidade. Povo que busca outro religare, num período de profunda orfandade. Orfandade que se expressa, dentre outros, no fato de que neste ano, por conta da pandemia, nem mesmo sua Santinha popular poderá sair às ruas para lhe acolher. A redenção, então, é a do Deus-Mercado, sem mediação nenhuma. Ao Mercado se sacrificam amontoados sob sol de Belém do Pará, agarrados uns aos outros em uma “corda” de gentes (um novo religare entre o ser e o consumo), pagadores de promessas que são, desejosos de que a Mercadoria lhes eleve. Seu limite é que o mercado não faz milagre e a dureza da vida mais cedo ou mais tarde chegará com o carnê da televisão comprada para pagamento em 12 parcelas.

E o que há em comum, então, nesses dois casos?

Em comum está a pobreza material e cultural, o embrutecimento das mentalidades, a desagregação das estruturas da vida coletiva e comunitária, a corrupção das sociabilidades populares que normalmente constroem a riqueza da cultura popular, da fala popular, do comunitarismo popular, da religiosidade popular; em resumo: o fetiche da mercadoria, o império do consumo, a busca desespera do embriagar-se para encarar a vida, a socialização por via do mercado, o avatar como modo de vida global, a coisa, a pobreza em todos os níveis materiais e espirituais, a coisificação e a desumanização.

Nos dois casos, a miséria existencial se converte em memes para o consumo de outros embriagados e fetichizados! Tão perdidos, tão carentes de medicalização, tão dependentes da imagem, dependentes da avatarização da vida, memificados e memificadores, desejosos dos likes que os confortam, imersos em melancolia, na depressão, na ansiedade, no pânico e no fetiche. Órfãos também!

Todos estão órfãos.

E o pai, não o padrasto, é o capitalismo: construtor, ao mesmo tempo, de miseráveis e de novos templos (reais e virtuais) de culto à mercadoria.

Em resumo, tristeza e a máxima espoliação do capitalismo sobre a vida humana, é o que define tudo isso!

Memórias boêmias do Círio de Nazaré

Até alguns anos atrás eu costumava ir para o circuito profano do Círio de Nazaré, juntamente com um grupo de amigos da universidade, na noite de sábado anterior à grande procissão. Passava a noite perambulando entre a Festa da Chiquita[1] e o Cirial.[2]

Costumava ficar “na República” até quase amanhecer e, lá por volta das 4 da manhã, eu e meus camaradas rumávamos para o Ver-O-Peso, onde encontrávamos milhares de fiéis se colocando ou já colocados na corda da Santa. Estavam sentados no chão, guardando os seus lugares e esperando a corda caminhar para pagarem suas promessas. Esse era o momento maior do sacrifício humano: “ir na corda”.

No caminho, éramos parados por homens do exército, numa verdadeira operação de guerra, que pediam que tirássemos os sapatos já que, de determinado perímetro em diante, sapatos nos pés poderiam machucar os demais promesseiros que estavam descalços. Fazíamos isso. Circulávamos na multidão que se formava e rumávamos para as barraquinhas do “Veropa”.

Lá o rolê recomeçava. Tecnobrega pra cá, brega pra lá, barulho pra todos os lados, fogos constantes, pessoas falando o tempo todo, “cuidado com a carteira!” (dizíamos uns aos outros!). Mais uma “gelada”, mais outra, mais outra, enquanto a multidão se aglomerava na rua à nossa frente. Esperando “a Santa passar”.

O dia amanhecia, o sol aparecia rumando da baia do Guajará em nossa direção e o centro de Belém a essa altura já estava tomado por milhões de pessoas: “rio de gente”, como já disseram tantos poetas.

O Ver-O-Peso fervilhava, pipocava, explodia. Caboclos, negros e indígenas desindianizados por todos os lados; pobres e ricos; turistas, boêmios amanhecidos da Chiquita; promesseiros, vendedores, “malacos”; prostitutas; cheiro de peixe frito no ar; e, a constante ameaça de uma pancadaria…

Cada barraca com o seu som no máximo. Suor, calor e fogos e mais fogos anunciando que a santinha já estava pertinho. Já estava chegando.

Barulho infernal!

Calor infernal!

Mas, eis que a Santa passava na frente das barracas do Ver-O-Peso e, como que por milagre, ao passar lentamente carregada por milhares de pessoas espremidas umas às outras, os sons das barracas eram desligados de acordo com seu caminhar.

Os bêbados por um momento retomavam parte da sobriedade perdida e cambaleantes percebiam que era hora de ficar quietos e calados. “Nazica” também abençoava os boêmios e os “papudinhos”…

Todos olhavam a santinha pequenina passar ao longe, cercada pela cúpula da igreja e ainda pela longa corda, que por sua vez estava rodeada por centenas ou milhares de pessoas comprimidas umas às outras…

Ao passar na nossa frente o tecnobrega da barraca era substituído pelo falar dos devotos, pelos fogos em homenagem à Santa (que na verdade nunca paravam!), pelos sinos que da Sé ainda repicavam e pelo “vós sóis o lírio mimoso…”, cantado em coro na rua por milhares de pessoas.

Em cerca de 10 minutos a Santa passava no trecho de rua que ficava em frente da barraca em que estávamos… e, ao passar, como uma onda organizada, o som das barracas eram religados, um a um, do mais distantes ao mais próximos, seguindo a lógica do afastar-se da berlinda. A territorialidade sonora profana, que fora interrompida pela territorialidade sonora sagrada dos cânticos católicos e falas devotas, voltava a dominar o cenário da feira.

Um dos nossos saia do transe sagrado e de repente gritava: “Ei garçom pega mais uma gelada ai!”.

E o Ver-O-Peso fervilhava, pipocava, explodia novamente.

Caboclos, negros, indígenas desindianizados, pobres, ricos, turistas, boêmios amanhecidos, promesseiros, vendedores, “malacos”, prostitutas, cheiro de peixe frito no ar e a constante ameaça de uma pancadaria… Cada barraca com o seu som no máximo! Suor, calor e fogos e mais fogos anunciando que a santinha estava indo embora, mais ainda estava pertinho…

Em poucos minutos fechávamos o ciclo completo do profano ao sagrado e do sagrado de volta ao profano… A feira toda constituía, ao seu modo, o seu próprio religare: do chão ao céu e, depois, do céu ao chão…

E o Ver-O-Peso fervilhava!

Barulho infernal!

Calor infernal!

– “Ei garçom, pega mais uma gelada ai pra gente!… Até parece que tu é remista, pô!”.

Até o ano que vem!…


[1] No sábado à noite ocorre a Festa da Chiquita, que iniciou na década de 1980, inicialmente como uma festa profana dentro da programação religiosa, sem o apoio da igreja obviamente. Com o passar do tempo foi sendo incorporada ao “movimento gay” e atualmente se afirma como evento de afirmação LGBTQI+. A festa tem a presença de drag queens e a escolha do “Veado de Ouro”. Ocorre ao lado do Theatro da Paz, na Praça da República. Por volta das 3, 4 da manhã faz concorrência com os promesseiros que vão acompanhar o Círio de Nazaré. Segundo o organizador da festa, o velho requeiro paraense Eloi Iglésias, a Festa da Chiquita é tão importante que só nela a Nossa Senhora original se faz presente, nos demais eventos religiosos do Círio ela manda “suas covers”, ou seja: a “santa peregrina”, que é a réplica da original!.

[2] O Cirial é uma festa tradicional do cenário roquista e underground de Belém que ocorre dentro da programação profana do Círio de Nazaré, paralelamente à Festa da Chiquita, também na Praça da República. No evento se apresentam bandas de vários estilos de rock e rap e outras formas de arte “alternativas”. A programação é menos regular que os outros eventos do Círio, tendo alguns anos ocorrido fora do espaço da Praça da República, no centro, onde ocorrem a maior parte dos eventos do Círio.

A magnífica máquina de fazer cafuné

I

Minha tese é de que o grande problema da civilização está ligado à passagem, à ultrapassagem melhor dizendo, da barreira civilizatória que chamo de “era do cafuné”.

No início dos tempos, quando as populações humanas eram pequenas e primitivas, mais ou menos na fase em que começávamos a construir os primeiros instrumentos, como o arco, a flecha e os tacapes, e começávamos a domesticação de animais e plantas, neste momento vivíamos a “era do cafuné”.

O cafuné naquela época, e assim o é até os dias de hoje, consistia no carinho voluntário ou, até mesmo, involuntário dado por um indivíduo sobre o corpo de outro indivíduo do grupo. Poderia ser um simples afago, um passar de mãos na cabeça ou até mesmo uma sofisticada catação de piolhos. As pessoas trocavam contato físico, trocavam energia orgônica, se reconheciam enquanto indivíduos de um grupo, manifestavam prazer e – já que o conflito faz parte da existência – descontentamento, através daquele ato corpóreo primordial.

Ocorre que com o desenvolvimento das forças produtivas, com a maior divisão sexual e social do trabalho, os grupos humanos superaram esta fase histórica de quase harmonia e proximidade físico-afetivo-espiritual, que tornava os indivíduos comunidade.

A passagem para a fase seguinte do desenvolvimento humano (o período pós-cafuné) nos levou a uma história bastante conhecida pelos historiadores: o surgimento da propriedade privada, do Estado e das desigualdades sociais, até o aparecimento do capitalismo na sua versão contemporânea.

Trocando em miúdos, o mundo contemporâneo é o mundo do não-cafuné, o mundo do indivíduo fragmentado, atomizado, que não é mais comunidade e não socializa sua força físico-afetivo-espiritual com os outros indivíduos do grupo, a não ser em escala muitíssimo reduzida.

O resultado lógico dessa involução foi a transformação do cafuné em uma atividade privada e vigiada, restrita aos carinhos maternais, paternais e/ou amorosos. O cafuné que temos hoje é na verdade um remanescente de uma fase histórica de plenitude, reduzido à condição de fragmento ou de ruína civilizatória.

II

Certa feita, um cientista pensou na possibilidade de fazer uma máquina diferente de tudo que havia sido inventado antes: a máquina de fazer cafuné.

A palavra cafuné deriva possivelmente de um termo encontrado na região africana onde hoje é Angola: kufundu. Esta palavra significa cravar, enterrar, o que leva a crer que o cafuné sempre consistiu no ato de enterrar os dedos na pelagem, na cabeça, cravá-los entre os cabelos, em movimento de carinho. Esta foi, sem dúvida nenhuma, a mais importante invenção da antiguidade, surgida obviamente no berço da civilização: a África.

O referido cientista, assim, elaborou um projeto de pesquisa arrojado e viajou à África onde fez estudos arqueológicos, históricos e antropológicos sobre o cafuné. Leu antigos manuscritos sobre a existência da energia orgônica ou energia vital e finalmente elaborou uma máquina simples que se utilizava da energia solar associada a esta energia corporal milenar.

A energia orgônica era conhecida desde tempos imemoriais, porém, modernamente, foi mais bem elaborada em termos científicos por Wilhelm Reich, discípulo dissidente de Freud. Para aquele pensador a energia orgônica era a forma mais importante de bioenergia e poderia ser encontrada em todos os seres vivos. Mais tarde, Reich chegaria mesmo a considerar que esta energia existia não só nos seres vivos, mas também na própria atmosfera.

A substância orgônica fluiria por todo o corpo humano, de cima para baixo, pela espinha, mais ou menos da mesma forma como no Yoga se pensa o conceito de prana. Para os adeptos do Yoga o prana circula por caminhos chamados de nadis, sendo os mais importantes o idapingala e o susumna, que estão relacionados com a coluna vertebral, o eixo do corpo. Mesmo sem conhecer tal pensamento Reich chegou a resultados parecidos em sua teoria sobre o orgônio.

É interessante ressaltar que teorias paralelas e independentes, novas e antigas, como a física moderna e o uso da acupuntura acabaram tratando de um conceito de energia parecido com o qual formularia Reich e, por outro lado, aproximaram-se um pouco do que teria sido a função social do cafuné em tempos remotos.

A acupuntura, por exemplo, nada mais é do que o ato de cravar (um outro kufundu) agulhas no corpo, de modo a equilibrar a energia. A física quântica, por sua vez, fala da troca constante de energia entre os corpos e apresenta a matéria tanto como partícula quanto como energia, como ondas. Nesse caso, energias, partículas e ondas participam de um cósmico e permanente processo de trocas, interconexões, intercravações (interkufundus) em todas as dimensões da vida, do mundo subatômico ao universo hiperbólico em movimento, passando pela vida humana.

Baseando-se um pouco em tudo isso, somando-se ainda elementos do espiritismo, Pitágoras e Hipócrates, sumak kawsay das populações andinas originárias etc., a máquina de cafuné teria como função principal restabelecer o contato corpóreo e cósmico entre os seres humanos, a partir do cafuné. Buscava-se restaurar a conexão da energia vital ou orgônica,  reconstituindo o equilíbrio entre o ser social moderno e o elemento físico-afetivo-espiritual perdido na evolução da espécie.

Contudo, para que isso desse certo era necessário que a máquina pudesse imitar condições sócio-cafunísticas parecidas com aquelas encontradas no cafuné propriamente dito, de outrora, o que seria quase impossível num mundo onde as pessoas não paravam nenhum momento suas atividades cotidianas de produção e consumo. A máquina teria que ser prática, leve e acompanhar as pessoas nas suas atividades rotineiras.

Neste sentido, imaginou o cientista que a energia solar, que por sua vez teria também energia orgônica acumulada da atmosfera, transformada em energia mecânica, poderia mover dedos e mãos artificiais, colocadas estrategicamente nas cabeças das pessoas, que ficariam recebendo cafuné enquanto trabalhavam, cominam, dormiam, caminhavam, conversavam, faziam sexo etc.

Inicialmente a máquina foi um sucesso. Dado fatores de herança genética, a cultura moderna ainda não havia excluído a sensação de prazer que o cafuné cria na maioria das pessoas. Logo a invenção se transformou na grande novidade das lojas de departamento em todo o mundo. Em países de línguas e culturas muito diferentes entre si houve uma adesão maciça à novidade.

Por um momento parecia que a humanidade havia alcançado a redenção final. Parecia que havíamos evoluído um degrau importante rumo a uma nova era: a nova civilização do cafuné.

III

Passado o entusiasmo inicial, viu-se, porém, que máquina estava trazendo sérios problemas para a vida das pessoas. Muitos faltavam ao trabalho por causa do sono característico provocado pelo cafuné. A produção das fábricas e da agricultura começava a diminuir e a economia começava a dar sinais de desgaste.

Pouco tempo depois da popularização do uso da máquina de fazer cafuné e da ampliação astronômica dos lucros das empresas que se dedicaram a este ramo de negócio, o PIB global reduziu drasticamente, uma vez que as demais atividades produtivas, de comércio e de especulação financeira quase paralisaram.  

O que não havia percebido o brilhante cientista foi que a energia liberada pela máquina de cafuné, ao mesmo tempo em que restabelecia o equilíbrio existencial sinestésico do toque corpóreo à sensação de prazer corpóreo-metafísico-espiritual perdido à milênios, por outro lado, colocava-se em oposição ao modelo de vida da civilização moderna e capitalista.

Era como se aos poucos as coisas começassem a voltar ao passado. O cafuné funcionava mais ou menos como um relógio que corria para trás, desacelerando o tempo, acomodando as pessoas em prazeres corpóreos-metafísico-existenciais não produtivos e nem consumistas.

E o pior ainda estaria por vir. A máquina de cafuné desencadeou sensações até então ocultas, congeladas no inconsciente mais profundo da mentalidade coletiva. Progressivamente as pessoas passaram a retomar a prática do cafuné sem a mediação da máquina de fazer cafuné e iniciaram uma nova cultura cafunística que ocorria em qualquer lugar e a qualquer momento, nas praças, nas ruas, nos carros, no transporte coletivo, no local de trabalho, além, é claro, das próprias casas.

Outra consequência da ação da máquina sobre as pessoas foi que aos poucos elas começaram a deixar de fazer coisas ditas modernas e atividades produtivas e passaram a realizar atividades vistas como inúteis, tais como: dormir, bocejar, ficar distraído olhando o nada, falar coisas bobas e amorosas, pedir licença, contemplar uma criança correndo, ficar horas esperando uma estrela cadente, dar bom dia, observar a lua, alimentar pombos, contemplar flores etc.

Ocorreu que, após a popularização da máquina de fazer cafuné e com o caos global daí derivado, os governos tentaram de início proibir o uso da máquina, porém em vários lugares do mundo as populações se levantarem agressivamente contra a ordem social vigente.

Movimentos sociais se organizaram de forma massiva. Greves, piquetes, revoltas indígenas, estudantes na rua, guerrilhas, ocorreram por anos seguidos. Parecia que de uma hora para outra tudo que a civilização ocidental havia construído como modelo de sociedade estava em risco apenas por causa de uma máquina. As massas se levantaram em oposição à proibição do uso da “máquina da paz e do amor”, como passou a ser conhecida nos núcleos subversivos e subculturas.

Um resultado lógico de tudo isso foi que a ciência, sempre ela, resolveu dar um jeito no caos que se estabeleceu. Outro cientista foi convocado para criar uma nova máquina, na verdade um dispositivo secreto, que suavizava a liberação da energia orgônica da máquina de fazer cafuné. Este dispositivo, que foi secreta e obrigatoriamente colocado na máquina original ainda em seu processo de fabricação, ficou conhecido pelo nome de “máquina de neutralizar cafuné”, já que recebia cerca de 90% da energia produzida pelo primeiro invento. Neutralizava, portanto, seus efeitos nocivos, sem que as pessoas percebessem ou pudessem reagir.

IV

Com o passar do tempo, as pessoas voltaram às suas atividades normais. Aos poucos as máquinas de fazer cafuné foram sendo esquecidas, devido ao fato de que seu efeito se tornou muito fraco ao ponto de não mais levar ao vício. Os grupos dissidentes que continuaram praticando o cafuné in natura, sem a mediação da máquina, foram perseguidos e presos. Tudo voltou ao normal e a civilização tomou seu caminho rumo ao progresso.

Hoje a máquina de fazer cafuné encontra-se quase que esquecida no hall da fama dos grandes inventos da ciência. Porém, corre à boca miúda que ela é usada ainda por setores marginais da sociedade: por intelectuais desviantes, personalidades transviadas, gurus exóticos, hippies, anarquistas, traficantes e drogados, vegetarianos e veganos, agroecologistas e bioconstrutores, grupos humanos isolados e selvagens, artistas e militantes de esquerda das mais variadas tendências.

Diz-se, inclusive, que muitos dos grandes artistas da modernidade fizeram brilhantes obras de arte sob o efeito do cafuné e que até mesmo algumas autoridades de postura exemplar no mundo da política, das finanças e da indústria, secretamente usam o cafuné como terapia alternativa aos problemas rotineiros do mundo moderno.

Contudo, pelo menos em termos oficiais, a máquina de fazer cafuné, na sua versão original, não mais existe, nem mesmo em museus. Não há mais como reconstruí-la, já que a sua fórmula foi destruída ou, segundo algumas teorias da conspiração, está guardada a sete chaves por pouquíssimas autoridades militares dos países centrais.

E é exatamente por este motivo que o cafuné ocorre ainda de forma muito fragmentada em atividades privadas e em momentos íntimos. Só nestes ambientes que, mesmo com a condenação moral pública e a permanente vigilância das autoridades, o cafuné ainda resiste, residual e marginal. Como se fosse a selvageria latente dos homens e mulheres primitivos que ainda persiste em cada um de nós…