Carta a um defunto amigo

Caro amigo morto que hora jaz em sua marmórea morada, hoje senti deveras tua falta.

Senti falta de nossos tempos de meninice, donde nos preocupávamos apenas com o horário que a campainha da escola tocaria, na hora do recreio, e poderíamos correr livremente pelos corredores cheios de crianças. Lembrei que tínhamos a habilidade de poucos de chegar primeiro à fila de distribuição da merenda. Tu sempre bem mais rápido que eu, é verdade, muitas vezes foste o primeiro a apanhar o lanche.

Fiquei saudoso e quase chorei dia desses ao me lembrar de nossa adolescência. Junto com a rapaziada, todos com 14, 15, 16 anos de idade, íamos a bando (todo mundo andava em bandos nesta época) para os igarapés da cidade. Nossa condução eram as bicicletas que sofriam como nossas molecagens pueris.

Fiquei horas lembrando essas coisas.

Lembrei ainda do dia que deixei minha casa em Igarapé-Miri, no interior do estado, pra vir morar em Belém… Lembrei que nesta época a casa estava em reformas, e eu, com meus 16 ou 17 anos de idade, olhei pela última vez o quintal que tantas vezes brinquei. Lembro como se fosse hoje este dia.

A parte de trás da casa estava desmontada, a madeira deitada ao chão, às 18 horas o sol já se despedia e as arvores grandes do quintal davam um ar de filme (aqueles filmes de terror donde o bosque guarda sempre mais coisas do que podemos pensar…). Foi neste momento que olhei pela última vez meu quintal e iniciei minha jornada para Belém, a capital, pra conhecer outras pessoas e outras experiências que eu não tinha. Depois fiz outras tantas viagens (mas essas são pra outro momento)…

Hoje, meu caro e defunto amigo, olho para trás e vejo que perdi muita coisa, inclusive a ti. Fico pensando como será a frialdade da terra onde habitas, imagino qual a relação que estabeleceste e ainda estabeleces com os vermes que te roem a carne e te lambem os ossos, o que pensas da outrora dura, e agora podre, madeira que te abriga, tens vontade de sair, de voltar a viver…? São coisas que não sei e não saberei tão cedo.

Quanto a mim, mudei muito. Nosso tempo de infância e adolescência ficou pra trás. Meus horizontes mudaram bastante e, como não pretendo morrer tão cedo – já que tenho, como todos têm, uma relação de amor e ódio com a vida -, sinto que não te verei tão breve, por isso mantenho contato por esta correspondência. Espero que possas responder em um sonho, qualquer dia desses.

E por falar em sonho, inerte amigo, tive um sonho estranho dia desses e não consigo tirá-lo de minha cabeça. Sonhei que estava dormindo (no sonho eu estava dormindo) e acordava com uma estranha coceira no dedo indicador da mão direita. Acordava e coçava o dedo, como a coceira não passava, olhava pra ver o que ocorria. Pra minha surpresa via uma nódoa verde na ponta do dedo, na região anterior à unha e neste mancha surgia um pequeno gramado, como um gramado de campo de futebol, com uma grama bem pequenina, mas de raiz profunda e de fina ramagem. Acordei-me de súbito (acordei de verdade, fora do sonho) e o dedo indicador ainda coçava, assim como doía um pouco. Não consegui dormir mais a noite toda e todos os dias medito se terá de fato um gramado nascendo de minha carne.

Temo esta possibilidade!

Caro amigo, não sei o que isso significa. Nunca fui dado a adivinhar sonhos. Talvez tu daí do mundo dos mortos possas me dizer algo sobre isso algum dia desses. De resto, vou levando a vida. Convivendo e falando com pessoas vivas todos os dias e tendo sonhos estranhos todas as noites.

Por fim, espero que estejas bem em teu funéreo descanso, pois que aqui na terra as coisas andam como sempre, às vezes melhores, às vezes piores, às vezes quente, às vezes frio, etc.

Despeço-me por hora, não tenho muito mais o que te dizer, não hoje. Nós falaremos em outros sonhos ou em outras cartas.

Até logo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *