Esquina capital

Ruas sem esquinas

Sem bares ou bêbados

E os cães nas ruas, felizes em suas coleiras

Já os humanos, de rua, estão amontoados em barracas

Esquinas sem ruas

De pessoas sem nome

Cidade sem cachorros de rua

Apenas humanos de rua

O projeto do comunista usufruído por outros

Os velhos donos do Brasil.

Conseguiremos resgatar a função social da economia?

Deixo aqui uma dica de leitura do excelente livro Resgatar a função social da economia de Ladislau Dowbor publicado a pouco tempo pela, também excelente, Editora Elefante.

Dowbor é professor de economia da PUC de São Paulo e tem uma vasta produção no campo da economia e, particularmente, da crítica ao pensamento neoliberal e ao capitalismo rentista da fase contemporânea. Também tem um site muito interessante onde apresenta livros que discutem os temas atuais da economia, sociedade, sociedade de informação etc. Vale a pena acompanhar seu site aqui.

Sobre o livro em questão, deixo apenas alguns comentários rápidos:

1. Um livro muito atualizado com a literatura nacional e internacional sobre o tema do capitalismo em sua fase hiperfinanceirizada, de plataformas digitais, da precarização do trabalho e da ideologia neoliberal. Sua tese no livro é exatamente a de que esse capitalismo super financeirizado e de plataformas, que vive de juros e de dezenas de formas de especulação para acumulação improdutiva (sem produção de mercadorias e sem geração de empregos), é uma verdadeira metamorfose no próprio capitalismo ou uma mudança, talvez, para um outro modo de produção propriamente rentista. Nessa pegada, o autor explica os inúmeros mecanismos cada vez mais sofisticados de o rentismo dominar o cenário das finanças mundiais e de nos afetar diretamente em nosso dia a dia, mesmo que não saibamos.

2. O livro é também um manualzão (no bom sentido do termo) de como encarar a economia contemporânea, com sugestões práticas e exemplos reais de construção de uma sociedade mais includente, a partir de uma economia planejada, dirigida pelo Estado e com maior controle da sociedade, contra o rentismo selvagem do setor especulativo. Aqui também o autor está muito atualizado no tema da economia com inclusão produtiva, investimentos em políticas sociais, necessidade de investimento em infraestrutura, geração de emprego, debate sobre a política tributária, crédito, inclusão digital, democracia participativa etc. Ou seja, com esse estilo de manual, dá pra pensar questões práticas de como enfrentar o rentismo dominante, caso houvesse ou haja uma maior organização da sociedade e governos mais soberanos no que diz respeito ao interesse popular e nacional.

3. Por fim, o livro tem a proposta, como diz o título, de “resgatar a função social da economia”. Parte do princípio, portanto, que em algum momento a economia teve uma função social (possivelmente nos recentes governos do Partido do Trabalhadores) e que é possível resgatá-la para um capitalismo, digamos, mais administrado pelo Estado e sociedade. Portanto, não é uma leitura que agradará, por exemplo, o revolucionário que só está esperando para tomar o poder e socializar os meios de produção etc. e tal. Eu, particularmente, acho que aí que está o caráter mais esperançoso do livro, muito mais do que prático.

Será que esse sistema ainda poderá ser administrado do jeito que está indo? Governos de tendência reformista ou “social-democratas” ou, ainda, neodesenvolvimentistas, no Brasil e América Latina, darão conta de evitar o caos do capitalismo estruturalmente em crise? Para muitos críticos, já estaríamos ladeira abaixo, quase dobrando a curva do não retorno que nos levará à extinção enquanto civilização e, possivelmente, ao extermínio físico (sem querer ser dramático).

Bom, as questões acima o livro não busca responder. E muito menos eu.

Assim, deixo apenas a dica de leitura pois, no mínimo, é um excelente texto que consegue explicar de forma bastante simples questões às vezes muito complexas e difíceis, mas que nos atingem de forma direta em nosso dia a dia.

Leitura necessária!

Arte popular “bolsonarista”, entre a “cafonice” e a incompreensão da esquerda

Muita gente se horrorizou ao ver os quadros, objetos, estátuas e esculturas feitos e presenteados ao genocida que está de mudança do Palácio da Alvorada e do Palácio do Planalto (espero que de mudança para o julgamento justo e o cárcere, em breve). São objetos quase sempre com a imagem do próprio Bolsonaro e de sua família.

Em um quadro ele aparece como um salvador montado em um cavalo branco, mais ou menos no estilo do famoso quadro de Henrique Bernardelli sobre o General Deodoro da Fonseca (não sei se foi intencional). Em outros, Bolsonaro aparece com a “caneta Bic”, com a esposa e filha, ou ainda com uma águia lhe acompanhando ao redor etc.

“Show de horrores” e “cafonice”, foi o disse a maioria dos críticos que viram as peças nas fotos que circulam nas redes sociais. Deixo claro que não discurso dessa avaliação geral, o bolsonarismo (como um todo) é um show de horrores, como todos sabemos. Mas quero complexificar aqui umas questões, sem querer ser polêmico nem nada do tipo (se é que é possível escrever nas redes sem acabar assumindo um tom polêmico e de pancadaria – não me agridam, por favor!).

Bom, direto ao tema e sem rodeios:

– Acho que ainda não compreendemos em profundidade a relação do bolsonarismo com os gostos populares, os desejos populares, as angustias populares, as culturas populares e, particularmente, com os modos de vida populares de setores do precariado (esse novo proletariado), os setores populares de fronteira (fronteira agrícola, fronteira do garimpo ilegal, do agro em geral), dos setores populares das áreas milicianas das grandes cidades, do mercado informal, do mercado informal contaminado pelas ideologias populares de empreendedorismo, o culto ao potencial “individual” que ao mesmo tempo se encontra com ideias antigas de salvacionismo de “mitos”, sebastianismos populares, etc.

Ou seja, não entendemos totalmente o bolsonarismo e sua ascensão pois não entendemos totalmente (se é que é possível) o povo e suas metamorfoses recentes.  

Lembremos: mesmo considerando a corrupção e compra de votos direta ou indireta, o projeto neofascista teve quase metade dos votos válidos e está vivíssimo, mesmo tendo um “líder” decadente e incompetente. Ou seja, é um fenômeno popular, enraizado, que pertence às estruturas de sentimento de parte significativa dos setores populares. “Alienação” apenas não dá conta de explicar!

São esses mesmos setores populares que fazem a arte popular em madeira, em pintura, em grafite, quadros com o rosto do facínora moldados com balas de fuzil etc. São peças que retratam Bolsonaro como “realizador”, “salvador”, “chefe de família exemplar”, como “patriota”. É retratado em objetos talhados em bala de fuzil simbolizando uma potência justiceira popular, o linchamento popular que agora está no poder, conta a “corrupção”, contra o “sistema”, contra a “bandidagem”, que vai agir com força e rapidez necessária para salvar o povo e deixá-los livres para empreender etc. Essa é a ideia que muitos quadros expressam.

A fixação na potência das motos, por exemplo, na velocidade, no desprezo às regulações em geral e, particularmente, a regulação do Estado (as leis de trânsito assumem esse papel no fetiche da moto veloz, sem capacetes e sem regras do “politicamente correto”), num cortejos de homens-alfa-motorizados… Nesse “cortejo triunfal” (como diria Walter Benjamin), as famosas motociatas, mesmo os motoboys precarizados, “cidadão falidos”, têm a possibilidade de ter um “igual” dirigindo loucamente, tal como eles mesmo fazem todos os dias em suas necessidades de “corres” pra ganhar a vida. Não à toa Bolsonaro ganhou uma estátua esculpida em madeira de uma moto em tamanha real. A moto é o ganha-pão de parte significativa do precariado urbano, homens, jovens, que precisam ganhar a vida e gostam de velocidade e adrenalina, num mundo cão que os oprime com multas e carros de playboys, violência urbana e trânsito selvagem…

Não é à toa também que um dos discursos “estéticos” e políticos do bolsonarismo foi direcionado contra a Lei Rouanet pois ela simboliza o oposto dessas culturas populares que são chamadas de “cafona”. A lei representou para o “povão” a burocracia da arte, a linguagem que “ninguém entende”, de artistas muito elaborados que, segundo as fake news bolsonaristas, fazem uma arte “libertina”, “contra a família” e ainda ganham milhões e milhões do dinheiro do povo, que financia a lei… Claro que isso é um delírio, disseminado para conquistar corações e mentes, mas funcionou. Ou seja, foi ao encontro de alguma sensibilidade popular pré-existente. Lembram do Gilberto Gil sendo violentamente agredido no Catar por uma cara que gritava “Lei Rouanet” e o chamou de “vagabundo”? Era a concepção estética de um empresário médio (lupemburguesia, talvez) sobre a demonização do que é visto como uma combinação degenerada: a “vagabundagem” mais a “arte de vanguarda”!

Ou seja, a estética bolsonarista soube captar para si parte da energia que emerge da fissura permanentemente existente entre as culturas populares e as culturas vistas como de elite, de vanguarda e cult. Essa tensão cultural faz parte do mesmo mecanismo das tensões de classe em uma sociedade como a nossa. Às vezes a tensão pode migrar à esquerda fazendo das culturas populares uma permanente rebeldia contra a ordem e fazendo as revoluções terem uma acentuada dose de festa popular. Mas às vezes também migra pra direita, fazendo as culturas populares e estéticas se tornarem parte da engrenagem do próprio sistema, mesmo com uma aparência de outsider. Bolsonaro é o próprio outsider que veio pra manter o sistema de acumulação do capital!

Portanto, para finalizar, cabe, muito mais que definir a “arte bolsonarista” como uma degenerescência “cafona”, “brega”, “feia” e “show de horrores”, tentarmos entender as conexões e enraizamentos que essas formas artísticas têm com o mundo popular do novo proletariado (precariado), o popular das áreas de fronteira do capital (garimpo, desmatamento, etc.), a lupemburguesia (pequena, média burguesia urbana do setores milicianos, do transporte clandestino, do comércio popular etc.), as religiosidades populares com seu antigo e/ou renovado sebastianismo, salvacionismo pela obra e acúmulo, os setores do empreendedorismo popular, as culturas populares adeptas da justiça pelo linchamento imediato (sem a burocracia do “sistema”), os setores cristãos punitivista, etc.

No fundo, a crítica mais apresada à arte popular bolsonarista (tudo indica que são artistas populares que presentearam o dito cujo) mostra nossa dificuldade (que já tem algumas décadas) em entendermos as metamorfoses do popular nessa fase do capitalismo periférico. Isso explica o porquê de parte da esquerda ter subestimado a força do lulismo (não do petismo) e, no final, foi este que de fato tornou-se a única força capaz de barrar parcialmente o neofascismo. O lulismo também é sedimentado nas culturas e sensibilidades populares. Explica também a rápida ascensão do neofascismo bolsonarista, que era visto por todos nós como uma piada de “mau gosto” a menos de 6 anos atrás. Vejamos, o “mau gosto”, “cafona”, “tosco”, “popularesco”, oposto ao cult e civilizado, tornou-se realidade e com muito custo estamos tirando o facínora do Palácio do Planalto, mas ainda não o eliminamos da vida social cultural e estética brasileira.

Percebemos, portanto, que as coisas são muito mais complexas. Precisamos estudar muito ainda mas, sobretudo, precisamos que a esquerda se reconectar com o mundo social, cultural, estético e os modos de vida da classe da qual pretende ser “representante”. Categorizar de forma simples e definitiva um setor da arte popular direcionado ao neofascismo como “cafona” ou “crise estética” é um postura muito parecida com a do discurso que define todo eleitor de Bolsonaro como “fascista” ou “gado”. É um reducionismo que não precisamos, que não explica tudo (na verdade, não explica nada) e não ajuda a entender a complexidade do fenômeno.

Carimbó: Tradição e modernidade na música ameríndio-afro-cabocla da Amazônia brasileira

Em 2021 publiquei um artigo sobre carimbó em um livro coletivo com colegas da UEPA. O livro Amazônia: História, Culturas e Identidades pode ser encontrado no site da Imprensa Oficial do Estado do Pará .

Aqui vou publicar apenas o texto sobre o carimbó para quem tiver interesse em ler.

A referência para citação:

ARAÚJO, Telmo Renato da Silva; COSTA, Tony Leão da. SILVA, Jairo de Jesus Nascimento da. (Orgs.) Amazônia: História, Culturas e Identidades – Belém: Imprensa Oficial do Estado, 2021.

Boa leitura.

Segue:

Carimbó: tradição e modernidade na música ameríndio-afro-cabocla da Amazônia brasileira

Tony Leão da Costa

Resumo: O presente artigo faz uma reflexão sobre o processo de construção da tradição musical paraense e da eleição do carimbó como música de identidade local/regional e, em parte, nacional, por meio de seu acesso à indústria cultural nas décadas de 1970 e 1980. Apesar de discutir a especificidade da chamada “modernização” ou “urbanização” do carimbó naquelas décadas, neste texto insiro tal fenômeno em uma análise de maior alcance, a qual busca considerar tanto o carimbó quanto outros gêneros musicais contemporâneos como expressões de uma mesma cultura popular ameríndio-afro-caboclaenraizada na territorialidade e historicidade da cidade de Belém do Pará e de sua hipermargem.

Palavras-chave: Carimbó “tradicional” e “moderno”. Música popular ameríndio-afro-cabocla. Belém do Pará.

1 A CIDADE DE BELÉM DO PARÁ E SUA CULTURA POPULAR E SONORA

Belém é uma cidade situada no Norte do Brasil, capital do estado do Pará, na Amazônia oriental brasileira. Foi fundada por colonizadores portugueses que iniciaram o processo colonial, bem como o extermínio físico e cultural das populações nativas, a partir do ano de 1616. Atualmente, possui uma população de quase um milhão e meio de habitantes. A cidade é cercada por bacias fluviais, constituindo-se quase que como uma península entre a Baía do Guajará e o Rio Guamá. Internamente, como em muitas cidades do Brasil e da América Latina, Belém é dividida em bairros populares, de classe média baixa e pobres, quase sempre denominados de “baixadas”[1] (ou periferias) e bairros de classe média, classe média-alta e ricos (a minoria numérica no espaço urbano) (PENTEADO, 1968; RODRIGUES, 1996; CARDOSO e LIMA, 2006).

Belém do Pará se compõe como uma cidade de muitas cidades, tanto do ponto de vista geográfico/morfológico quanto do ponto de vista étnico e cultural. Sua vida musical, em boa parte, é explicada pelas territorialidades periféricas e pela rica cultura popular/sonora urbana daí advinda, assim como pelas conexões dessa cultura periférica com os interiores profundos ameríndio-afro-caboclos da Amazônia, com ondas sonoras da diáspora afro-americana do Grã-Caribe e, ainda, com a música brasileira de outras regiões.

A cidade de Belém sempre desempenhou um papel importante como centro de recepção, criação, recriação e difusão cultural para a região circunvizinha e para regiões mais distantes, o que se explica pelo fato de que as partes da cidade formadas pelos bairros periféricos funcionaram como territórios de desenvolvimento e consolidação de matrizes sonoras e formas de lazer e festas que construíram uma tradição popular duradoura (COSTA, 2013, 2014).

A região amazônica no século XVII se encontrava densamente habitada por povos indígenas com aspectos culturais e linguísticos variados. Na área onde a cidade de Belém foi fundada, a colonização se deu pela cruz da Igreja Católica e pela espada do Estado português que formavam os dois lados da política de conquista da planície amazônica aos interesses europeus. Em consequência, a cidade se expandiu a partir da construção de fortes militares e de igrejas, ao mesmo tempo em que os indígenas eram submetidos à desindianização e ocidentalização (CHAMBOULEYRON, 2010; SAMPAIO, 2010; SOUZA JÚNIOR, 2010).

Esse contato, no entanto, nem sempre foi pacífico e resistências da parte dos nativos sempre ocorreram, como mostra a revolta tupinambá liderada pelo cacique Guaiamiaba em 1619. Porém, no decorrer dos séculos, a cidade de Belém viu sua população indígena ser lentamente reduzida à condição de índios “destribalizados”, mais ou menos mestiçados como “curibocas”, “mamelucos”, “tapuios” e “caboclos”. De fato, sua população originária permaneceu viva nas suas regiões periféricas, porém em processo de silenciamento de sua história autoconsciente como descendentes de indígenas (VERISSIMO, 1887; LIMA, 1999; GUZMÁN, 2006; RODRIGUES, 2006, 2008; COSTA, 2015a).

O “povo” amazônida de Belém do Pará também teve em sua formação a presença de africanos que começaram a chegar na região ainda no século XVII. A partir de 1660, vários ciclos epidêmicos de varíola reduziram a população indígena que dava sustentação com seu trabalho à economia colonial. A mão de obra africana surgiu como alternativa, tornando a busca de escravos de várias regiões da África cada vez mais importante. No século XVII, a maioria dos escravos provinha da Guiné e da Costa da Mina e, no decorrer do século XVIII e adiante, da ampla área da costa da Senegâmbia ao golfo da Guiné, havendo também grupos advindos de Luanda, África Centro-Ocidental e Ilha de Santa Helena. Ademais, em vários momentos ocorreram rotas de tráfico interno dentro do território brasileiro, do Nordeste ou do Centro-Oeste, rumo à região amazônica e vice-versa (VERGOLINO-HENRY, FIGUEIREDO, 1990; SALLES, 2005; BEZERRA NETO, 2010).

Em todos esses momentos, cidades como Belém do Pará e São Luis do Maranhão se mantiveram como principais portas de entrada para o tráfico negreiro na região. Se é verdade que a quantidade de africanos vindos para a Amazônia oriental foi bem menor em termos absolutos se comparado a outras cidades do Brasil, como Salvador e Rio de Janeiro,  sabe-se, atualmente, que o impacto biológico e cultural da presença negra na região amazônica foi muito grande em decorrência da reduzida população europeia existente nesse território (CHAMBOULEYRON, 2006).

Outros processos migratórios foram importantes, mas se destaca neste estudo a vinda de milhares de “nordestinos” do Nordeste brasileiro durante dois ciclos da economia da borracha na região: entre 1870 a 1910 e na década de 1940. A população de imigrantes que fugia da pobreza, da seca e da falta de terras, em estados como o Ceará, era incorporada à população pré-existente. Muitos desses imigrantes acabaram sendo absorvidos nas periferias de cidades como Belém do Pará, quando os ciclos da borracha chegaram a seu fim (LACERDA, 2010; ALENCAR, 2010).

Esses fenômenos de chegadas de grupos migratórios, de grande diversidade étnica e cultural, permitiram que determinados espaços da cidade, sobretudo aqueles habitados por setores populares, tornassem-se ambientes de sedimentação de variáveis expressões de culturas populares de origem indígena, africana, afro-indígena, cabocla e popular nordestina. Um exemplo disso pode ser verificado no caso do bairro do Umarizal, que, nas primeiras décadas do século XX, poderia ser considerado um bairro popular, com muitas áreas alagáveis, ou seja, “baixadas”. Algumas crônicas memorialísticas, narrativas literárias e anotações de folcloristas mostram a dimensão da diversidade de vida cultural e musical ali existente.

O escritor De Campos Ribeiro, no livro Gostosa Belém de outrora…, relatou suas memórias de infância e adolescência passadas no bairro do Umarizal. Descreveu com detalhes a grande quantidade de manifestações festivas, como bois-bumbás, pássaros e bichos[2], grupos de carnaval, esmolantes de santo, carimbós, batuques e presença permanente de capoeiras. Naquele bairro ocorriam os esperados “bailaricos” em que se tocavam “valsas, mazurcas, marchas e tangos” (DE CAMPOS RIBEIRO, 2005, p. 36). O escritor fala também dos “bambas tiradores de toadas”, que eram, na verdade, os “Amos de bumbá”. De Campos Ribeiro assim os descreve: “respeitados pelo poder da improvisação nos encontros onde a arma de combate era a resposta pronta, a glosa ao mote do contrário” (DE CAMPOS RIBEIRO, 2005, p. 100).

No mesmo sentido, vão as observações do músico, compositor e folclorista negro, também morador do Umarizal, Tó Teixeira, um grande participante da vida cultural da cidade durante muitas décadas do século XX. Em um manuscrito intitulado 40 números de músicas folclóricas escritas não para vender e sim para recordação do passado[3], escrito pelo artista, é retratado o mesmo bairro de De Campos Ribeiro nas décadas de 1910 e 1920.

Nesse documento são descritos uma série de gêneros musicais populares como o Coco bambeando, música na qual os “pretos dançavam bambeando-se como se estivessem bêbados ou alterados pela maconha”[4]. Descreve-se outro coco, o Querida, um “coco maduro – dança alagoana”, cantado pelo alagoano Lucindo em 1908. Sobre esse coco, diz-se: “dança e canto nordestino, de provável origem alagoana”. Sobre Lucindo, dizia-se que era “figura popular na época, que conseguiu ingressar nos terreiros do Umarizal. Mulato escuro teve fama de cantador de cocos e emboladas”[5]. Nesse momento, gêneros musicais do Nordeste já faziam parte da diversidade cultural das periferias de Belém e eram bem aceitos nos bairros populares reconhecidamente festivos, como era o caso do Umarizal. Fora esses gêneros, Tó Teixeira registrou lundus, batuques, “chulas de negros africanos”, “danças de mulatas vendedeiras” e bambiás.

Junto à pasta em que se encontra o manuscrito de Tó Teixeira, alguns documentos e correspondências dele com o folclorista Vicente Salles dão conta da presença do carimbó nas regiões populares da cidade. Nesse momento, o carimbó, como a maior parte dos gêneros musicais citados, era um evento suburbano e das classes populares. Sobre ele, fala Vicente Salles:

O antigo carimbó em Belém muitas vezes era confundido com o batuque. Batuque dançado no terreiro e abrigado a tambores. Ocorria em qualquer época, a pretexto de qualquer acontecimento. Havia diferentemente o batuque dançado no interior de certas casas, tidas como casas de culto aos deuses africanos, em dias certos da semana e em certos dias de guarda do calendário religioso católico, associado aos santos do hagiológico católico.

Batuques e carimbós eram batidos em quase toda a cidade no dia 8 de dezembro, homenagem a Conceição ou durante as festas consagradas a S. Benedito.

O carimbó era uma dança viva e movimentada. A coreografia se assemelhava à do lundum. Mas tinha outras características próprias. Os dançarinos, descalços, um na frente do outro, estalando os dedos. A assistência participa do folguedo e pede aos dançarinos que imitem bichos, como o galo, a galinha, o peru, o macaco, o gato, etc. Então eles imitam o canto do galo, o cacarejar da galinha e assim por diante. Entrementes, danças unidas as testas, girando sobre si mesmo, maneando-se e coçando a cabeça um do outro. A memória dos negros guardou alguns versos desse tempo como a melodia acima registrada por Tó Teixeira.[6]

As periferias de Belém do Pará incorporavam e incorporam a musicalidade dos setores populares migrantes que se somavam às territorialidades sonoras existentes. O Tambor de Mina, por exemplo, religião trazida pelos escravos vindos do Reino de Daomé (atual República Popular do Benim) para o estado do Maranhão e depois para o Pará, no século XIX, deixou uma forte marca na musicalidade e nas festas populares paraenses, principalmente em seus batuques. Atualmente, é possível vermos bois-bumbás, pássaros-bumbás, cachorros-bumbás, cavalos-bumbás e outros bichos fazendo parte das festas de São João, as quais são organizadas por Mãe Ray, sacerdotisa de Tambor do Mina do bairro da Terra Firme (COSTA, 2017)[7].

Os cultos e musicalidade afro-maranhenses podem ser vistos também na “Rua dos Pretos”, área localizada entre os bairros da Terra Firme e Guamá, onde uma colônia mais recentes de negros maranhenses ainda cultua o Tambor de Crioula e outros elementos cultuais da maranhencidade, como, por exemplo, o reggae (COSTA, 2015b; FERRETTI, 2010). Igualmente ocorre com a presença de terreiros de Umbanda (vindos do Rio de Janeiro) que se tornaram comuns na cidade durante o século XX e, ainda, a chegada do candomblé baiano na década de 1950, que tem se manifestado política e culturalmente em grupos de afoxé como o Ita Lemi Sinavuru, de Pai Edson Catendê ou o Axé Dùdù, grupo ligado ao CEDENPA (Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará) (CAMPELO, LUCA, 2007).

Percebe-se, portanto, que os bairros suburbanos incorporavam muitas expressões culturais e sonoras, tanto elementos “locais” quanto músicas trazidas mais recentemente por imigrantes de outras partes do Brasil e, como se verá a adiante, também do mundo. 

Outro elemento importante para o entendimento da vida cultural da cidade de Belém está em sua geografia. O fato de ser cercada de rios e baías e também de ser recortada de furos e igarapés (que lhe dividem internamente) lhe converteu à condição de território de encontro entre as culturas de regiões interioranas (cidades e comunidades do interior da Amazônia) e a cultura da “capital”. Em Belém, dezenas de portos, rios e igarapés fazem a conexão econômica e cultural da cidade com o campo, com os rios distantes, com comunidades quilombolas, com o mundo indígena e ribeirinho da Amazônia profunda. O homem/mulher do interior trazia para as feiras e portos de Belém os produtos ribeirinhos, do campo, mas também os modos de falar, os instrumentos musicais, os gêneros sonoros e a cultura aquática da Amazônia. Tudo isso se encontrava nos portos fluviais, igarapés e “baixadas”, constituindo a cidade subterrânea e subaquática do “povo” de Belém do Pará e da Amazônia (COSTA, 2013).

No Igarapé das Almas, também no bairro do Umarizal, no ano 1939, por exemplo, era o igarapé e a feira a seu redor que faziam o encontro dos grupos populares urbanos com os ameríndios-afro-caboclos do interior do estado; esses últimos descritos pela poeta Adalcinda como aquele “que não têm roupa nem calçados” e “que vivem de lá pra cá,/rio abaixo, rio acima/dias inteiros pra chegar no Guajará!”. Esse sujeitos interioranos traziam “lenha, trazem frutas,/trazem peixe do salgado,/planta, farinha, açaí,/trazem tudo pro mercado…”[8], mas traziam também seu modos de vida, linguagem, cultura e musicalidade.

Assim, por conta de sua formação histórica, a periferia de Belém do Pará passou a compor uma espécie de “hipermargem” social, racial e cultural, um território de continuidade histórica que conecta a “margem” urbana às “margens” interioranas e aos fluxos de imigrantes subalternizados de vários períodos históricos. Um espaço de sedimentação dos vários ciclos de chegadas de povos e de culturas populares (COSTA, 2014). Do ponto de vista étnico e racial, os subúrbios da cidade eram onde moravam a maioria indígena “desindianizada” e seus mestiços, africanos e descendentes, os nordestinos pobres, a minoria de brancos pobres etc., um conjunto que já foi definido por muitos estudiosos como “tapuio”, “caboclo” ou, ainda, negro e/ou indígena. Neste estudo, quero definir como um complexo cultural popular ameríndio-afro-caboclo.

Nessa hipermargem serão formados, recebidos e/ou consolidados gêneros musicais tradicionais e modernos criados a partir desse complexo social, cultural e racial: o samba local e o nacional; o samba-de-cacete e o siriá (vindos dos quilombos da região do Baixo-Tocantins); o Tambor de Mina (religião afro-ameríndia maranhense) e o tambor de crioula (chegados dos quilombos do Maranhão); toadas de bois-bumbás; o batuque; a capoeira; o bambiá; o coco e a embolada (trazidos pelos nordestinos); o carimbó (presentes em várias áreas rurais da Amazônia oriental e na periferia de Belém); o merengue, a cúmbia e outros tipos “caribenhos” (chegados via rádio, discos ou por shows) que contribuirão para o surgimento de “lambadas”, “guitarradas”, “bregas”, “tecnomélodys” ou “tecnobregas” contemporâneos. Todos esses gêneros musicais primeiramente foram criados e/ou recebidos e reelaborados nas periferias de Belém antes de entrarem na indústria do disco ou de serem apropriados por setores das classes médias e altas (COSTA, 2013).

2 A DIVERSIDADE DO CENÁRIO MUSICAL DA DÉCADA DE 1970 E 1980

A década de 1970 ficou marcada como fase na qual a música advinda do complexo cultural popular ameríndio-afro-caboclo se consolidou e se expandiu. Nesse período, ficou mais claro não apenas a conexão intra-amazônica da hipermargem de Belém do Pará com as cidades do interior do estado, o campo e o mundo ribeirinho. Outras conexões com outras “margens” se tornaram mais evidentes como, por exemplo, a conexão da música local com a música chamada de “caribenha” e com a música “povão” de outras regiões do Brasil.

Esse fenômeno derivou de acontecimentos sucedidos no final da década de 1960 e sobretudo nos anos 1970, tais como a consolidação do circuito de festas de aparelhagens sonoras como meio de difusão fundamental para a cultura musical periférica; a formação e consolidação de um setor de gravadoras locais e de um complexo radiofônico de música popular periférica, conhecida nos anos 1970/80 como “música povão”; a difusão da música popular local e também as trocas culturais com outras regiões do Brasil, particularmente com o Nordeste, o que contribuiu para difundir uma tradição musical “paraense” para além das fronteiras originais; a atuação dos conjuntos musicais que permitiram a “modernização” do carimbó e de outros gêneros tradicionais associados a ele; e o “abrasileiramento” de gênero musicais estrangeiros – conhecidos em Belém como “música caribenha” – que deu origem a uma música local específica.  

Nas seções que seguem, veremos em mais detalhes cada um desses acontecimentos.

2.1 O CIRCUITO DE APARELHAGENS

Um primeiro elemento para se entender a tradição musical formatada a partir da cidade de Belém do Pará na década de 1970 e 1980 é a consolidação de um tipo de festa e de uma modalidade de uso de equipamentos tecnológicos que naquela década passou a ser chamado de aparelhagem sonora ou simplesmente aparelhagens.

As primeiras aparelhagens eram nada mais do que a conexão de gramofones a “bocas-de-ferro” (amplificadores de som) afixados em postes de iluminação pública ou árvores, usados para animar festas familiares ou de rua ou, ainda, para chamar clientes para lojas e feiras populares. Esses equipamentos foram aperfeiçoados de forma mais ou menos amadora, com a sabedoria de técnicos especializados em consertos de aparelhos eletrônicos e, aos poucos, foram assumindo grandes dimensões.

Em Belém, a história das aparelhagens é bastante antiga. Mostrei, em trabalho anterior, que a origem do que viria a ser chamado de aparelhagem remonta às rádios de subúrbio existentes desde, pelo menos, o ano de 1941 (COSTA, 2013).  Nos anos 1950, essas rádios de subúrbio passaram a ser chamadas de sonoros e, mais tarde, ficaram conhecidos por aparelhagens. Atualmente, são gigantescos sistemas de som, com enormes caixas amplificadoras, equipamentos moderníssimos de iluminação, vídeo e áudio. Seus DJs (disc jockeys) podem chegar a se tornar artistas famosos, seguidos por fã-clubes que os acompanham nas festas que ocorrem durante toda a semana, principalmente nos bairros periféricos e também em cidades do interior do Pará.

As aparelhagens do Pará lembram um pouco o fenômeno dos Sound Systems surgidos a partir da década de 1950 nos guetos de Kingston, Jamaica. As Sound systems se constituíam em uma espécie de microcosmos do mundo social, cultural e econômico de onde surgiram: os bairros pobres a oeste da capital jamaicana. Apenas na década de 1990 surgiram sistemas sonoros direcionados a pequena classe média e dirigido por proprietários desses grupos sociais (HENRIQUES, 2003).

Uma variação desse sistema de som, conhecido como radiolas, também é bastante comum no estado do Maranhão. Nesse estado, as radiolas sonorizavam festas populares onde tocava forró, lambada, merengue, entre outros ritmos, em “festejos de santo” na capital ou no interior do estado. Nos anos 1970, o reggae jamaicano encontrou forte recepção entre as comunidades negras de bairros periféricos e de zonas marginais da cidade de São Luis do Maranhão, como no caso da zona do baixo meretrício no centro histórico. Desde então, o gênero se tornou um forte elemento identitário da cultura negra e maranhense (SILVA, 2007).

No caso do Pará, as aparelhagens não se especializaram em apenas um tipo de música, mas, dependendo da década, veiculavam as músicas mais populares do momento ao que ocorria com as rádios e com o mundo do disco local, nacional e internacional. Dentre os gêneros musicais locais, o carimbó, o siriá (até os anos 1970), o brega e o “circuito bregueiro” (anos 1980) (COSTA, 2009) e o tecnobrega ou tecnomelody (na atualidade) sempre tiveram nas aparelhagens um importante espaço de difusão e sustentação. Por outro lado, merengues, zouks, cúmbias, calipsos e outras músicas chamadas genericamente de “música caribenha”, veiculadas nas aparelhagens foram posteriormente “abrasileiradas” e deram origem a “lambadas” e “guitarradas” feitas por artistas do Pará (COSTA, 2013).

Na década de 1970, o circuito de aparelhagens estava consolidado e muito da cultura sonora e musical local só podia ser entendida se fosse considerada a sustentação que essas festas e equipamentos davam aos artistas e à música paraense. As aparelhagens, portanto, simbolizam uma transformação tecnológica nas formas de sonorização e sociabilidade do complexo cultural ameríndio-afro-caboclo. Seriam nos mesmos bairros periféricos onde eram espacializados os batuques, bumbás e carimbós, na sua forma “tradicional”, que mais tarde novos gêneros “populares”, a “música povão” nacional e estrangeira, assim como carimbós e siriás “modernizados” (ou “elétricos”) seriam veiculados pelas aparelhagens. O circuito das aparelhagens seguia, inclusive, a mesma territorialidade fluvial preexistente, por meio da circulação de festas em cidades do interior, comunidades, riozinhos, etc., onde, ao eco dos tambores, somaram-se aos equipamentos tecnológicos. A quantidade de aparelhagens existentes em pequenas cidades do interior do estado do Pará e a circulação permanente que elas realizavam e realizam, pelos rios, sonorizando festas em médias e pequenas cidades e em comunidades ribeirinhas e rurais ainda está por ser estudada.

2.2    RÁDIOS E GRAVADORAS: INTERCÂMBIOS E DIFUSÃO DA MÚSICA PARAENSE

O mundo radiofônico em Belém teve sua gênese com a fundação da Rádio Clube do Pará em 1928. Posteriormente, outras rádios foram surgindo em toda a região amazônica. Nos anos de 1940 e 1950, período em que essas rádios se tornaram mais acessíveis a um público mais amplo, as emissoras locais foram importantíssimas para lançar artistas e tendências musicais. Alguns artistas que iniciaram suas carreiras em Belém do Pará, na Rádio Clube, por exemplo, acabariam sendo incorporados pelas grandes rádios do sudeste do Brasil, nas cidades do Rio de Janeiro ou São Paulo. Por outro lado, as rádios locais importaram e veicularam artistas e gêneros musicais do Brasil e do mundo: do samba carioca ao jazz norte-americano, passando pela música nordestina até os gêneros “caribenhos” (COSTA, 2013, 2016).

Nos anos 1970, várias rádios paraenses se encontravam especializadas no público popular. Nesse período, consolidou-se um gosto musical popular e periférico que ficaria conhecido pelo termo “música povão”. Seria a música “popularesca”, também chamada de música “cafona” e, mais tarde, de música “brega”, aquela direcionada aos extratos sociais mais baixos da sociedade brasileira: os moradores das periferias urbanas ou das cidades pobres e pequenas do interior da Amazônia e do Brasil (SILVA, 2003; ARAÚJO, 2003; COSTA, 2009; COSTA, 2013).

Esse tipo de música era veiculado nas aparelhagens sonoras e também nas rádios locais, sobretudo nas rádios AM, que se tornavam cada vez mais populares na região. Ao mesmo tempo, em inícios da década de 1970, os artistas locais começavam a serem gravados e difundidos pelas primeiras gravadoras de Belém do Pará.

A história das empresas fonográficas na cidade se inicia com o surgimento da Rauland Belém Som Ltda (proprietária da Rádio Rauland e de um estúdio de gravação), em inícios dos anos 1970, a qual era uma pequena empresa que lançou artistas de carimbó e siriá, além de cantores de boleros e merengues “abrasileirados”, entre os quais estavam nomes importantes como Pinduca, Cupijó, Orlando Pereira, entre outros. No Pará, a Rauland apenas produzia e distribuía os discos desses artistas, a prensagem era feita fora do estado por empresas mais estruturadas. Outras gravadoras importantes, a partir desse momento, foram a Erla, a Gravasom, a Ostasom e o Studio M. Produções.

Ainda na década de 1970, o cantor e empresário Carlos Santos criou a Gravasom, que desempenhou um papel central na descoberta, produção e gravação de artistas locais. É importante se considerar a importância da atuação desse personagem no cenário musical paraense entras décadas de 1970 e 1980. Além da Gravasom, Carlos Santos conseguiu construir um conjunto de empresas composta por rádios AM e FM, lojas de venda de LPs e, mais tarde, TVs. Além disso, tinha contatos comerciais com várias gravadoras e rádios do setor popular em cidades do Nordeste brasileiro e em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. Na década de 1980, o grupo foi um dos mais importantes incentivadores da música brega e o produtor da grande maioria de artistas associados a esse gênero musical. Entre fins dos anos 1970 e durante toda a década de 1980, os empreendimentos do Grupo Carlos Santos foram centrais para lançar artistas no cenário local e para levá-los ao sucesso no Brasil (particularmente no Nordeste) e, algumas vezes, em outros países (COSTA, 2011). Em setembro de 1982, por exemplo, a Gravasom assinou um contrato para distribuição e divulgação nacional de seus discos com a empresa Polygram. Isso mostrava claramente o interesse de expansão do grupo, como dizia a matéria do jornal O Sucesso: “O evento bastante significativo para os profissionais da música do Norte, deixa bem claro o interesse de levar aos mais distantes confins do Brasil o trabalho artístico do artista paraense, bem como de todos os contratados da Gravasom”[9].

Essa projeção oferecida pelas gravadoras locais foi importante para construir uma ideia externa do Brasil sobre a música paraense, que passou a ser vista como possuidora de uma sonoridade peculiar no conjunto da música nacional. Carimbós, lambadas (merengues e cúmbias abrasileiradas) e bregas passariam, desde então, a serem reconhecidos como criações típicas do Norte do Brasil.  

Os intercâmbios culturais e sonoros levaram ao fenômeno da sedimentação de culturas populares subalternas na hipermargem de Belém, conformando um território de culturas em abolição que, em vários momentos, foram incorporadas pelo mundo das tecnologias sonoras e de comunicação (aparelhagens, rádios e gravadoras) da chamada “música povão”, a partir da década de 1940 e especialmente nos anos 1970 e 1980, e se expandiram para outros lugares do Brasil.

A circulação dos artistas da Gravasom, por exemplo, em cidades do Nordeste brasileiro, como Fortaleza, Salvador e Recife, fez com que houvesse uma segunda instância de ressonância das musicalidades sedimentadas em Belém. De fato, aquilo que o Brasil chama, atualmente, de música paraense ou amazônica é, em boa parte, a música e a cultura sonora dos extratos populares da região, amplificadas pela “indústria cultural povão” local durante aquelas décadas (COSTA, 2013).

2.3 BANDAS E CONJUNTOS MUSICAIS

A música “povão” era também difundida pela atuação de bandas, conhecidas popularmente pelo nome de “bandas de baile” ou “conjuntos” que apresentavam música ao vivo em festas populares de bairros boêmios da cidade de Belém.

Desde o início do século XX, Belém apresentava um rico circuito de boates, bares e sedes de clubes sociais. Entre as décadas de 1950 e 1980, o bairro da Condor se destacou como ponto central da vida cultural e noturna da cidade, com suas muitas boates, gafieiras, “inferninhos”, prostíbulos etc. (LARÊDO, 2003). Esses espaços iam desde ambientes refinados que atendiam à elite belenense até pequenos botecos onde o público frequentador era o morador das periferias, o interiorano migrante e a população ameríndio-afro-cabocla.

A Condor estabelecia vários encontros na vida cultural da cidade, por via das músicas veiculada nas festas de aparelhagem, assim como as músicas tocadas ao vivo pelos muitos conjuntos locais. O fato de reunir tanto os setores populares quanto a elite que frequentava determinados clubes – como o Palácio dos Bares – fazia com que a Condor figurasse como ponto de intersecção entre tradições sonoras de várias origens sociais. Nesse ambiente, os artistas das classes médias e universitários, ligados mais ao gosto “nacional” da MPB (a “Música Popular Brasileira” de Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento e outros) tiveram também contato com as músicas popularescas do gosto do “povão”. Alguns artistas, como o violonista Paulo André Barata, lembram que na Condor era onde os melhores músicos se reuniam e as tendências nacionais e internacionais chegavam.

A Condor exerceu um fator preponderante no tipo de música que eu faço, porque lá recebi influência do Caribe, através do merengue. Nós íamos para estes lugares, porque a grande música no Pará não tocava no Pará Clube nem na Assembleia Paraense e, sim, nos guetos.[10]

Os conjuntos musicais que se apresentavam na Condor e nos demais circuitos boêmios da cidade funcionavam como pequenas orquestras, dirigidas por um músico mais experiente, que tocavam todos os gêneros musicais da moda: do samba ao merengue, do carimbó ao bolero, do frevo ao brega, dependendo do período e do público. Um mesmo artista e seu conjunto poderiam tocar determinados gêneros em um ambiente burguês e tocar outros em situações mais populares. Até os anos 1970, o carimbó, por exemplo, que Pinduca começava a difundir no conjunto musical que comandava, só podia ser apresentado em ambientes periféricos, sendo evitado quando da realização de shows em áreas mais “nobres” da cidade[11].

Artistas famosos como Pinduca, Cupijó, Orlando Pereira e Vieira fizeram sucesso com seus conjuntos, tanto em Belém quanto no interior do estado do Pará. Algumas cidades do estado – como Igarapé-Miri, Cametá, Abaetetuba, Vigia e Santarém – também ficaram conhecidas pela grande presença de músicos e muitos conjuntos. Muitos artistas consolidavam suas carreiras ao virem para Belém, ao se apresentarem no circuito de bares da Condor e em outros espaços. Quando os artistas do interior do estado vinham para Belém, traziam consigo a musicalidade e a sonoridade do interior que eram também incorporadas nos conjuntos musicais da capital.

Graças aos conjuntos musicais, instrumentos modernos (guitarras, contrabaixo, baterias, metais, teclados, sintetizadores etc.) foram utilizados em músicas tradicionais e gêneros musicais que, até então, eram vistos como folclóricos e/ou suburbanos foram sendo popularizados no conjunto do mundo urbano. Esse foi o caso de Pinduca com a modernização do carimbó ou de Cupijó com a modernização do siriá.

Da mesma forma, eram esses conjuntos que muitas vezes popularizavam os gêneros externos na vida da cidade, tocavam merengues e cúmbias na periferia de Belém, por exemplo, e permitiram que tais ritmos fossem assimilados e transformados por artistas locais. Assim, pode-se dizer que os conjuntos faziam a síntese de várias tradições musicais (interioranas, locais e externas), tanto quanto atendiam a públicos de classes sociais e gostos diferentes. Por esses motivos, tornaram-se um dos elementos estruturadores da tradição musical local.

2.4 CARIBE

Desde os anos 1940, os gêneros dançantes do “Caribe” eram veiculados nas rádios paraenses e em rádios estrangeiras – de Cuba, por exemplo – que conseguiam chegar até Belém e a cidades do interior da Amazônia, segundo o que relatam muitos artistas. Paralelamente, sobretudo nos anos 1960 e 1970, foi muito comum que as aparelhagens sonoras funcionassem como um ponto de chagada de Long Plays de música caribenha.

Existia, na verdade, um vigoroso mercado de compra e venda de discos realizados por DJs que conectava os sons que vinham das Guinas, Suriname, Venezuela, Colômbia, Cuba etc. com as aparelhagens do Pará. Os melhores DJs e as melhores aparelhagens disputavam o público ao trazerem, em primeira mão, os sucessos dançantes que surgiam nesses países e que, mais tarde, invadiam as rádios populares e eram incorporados no repertório dos conjuntos musicais.

Com o passar do tempo, as gravadoras locais começaram a lançar artistas paraenses que compunham formas musicais inspiradas na sonoridade caribenha, como no caso do que ficou conhecido na década de 1970 como lambadas. Essas mesmas gravadoras lançavam coletâneas com as músicas originais, importadas dos países acima citados, intituladas de Lambadas Internacionais. O Grupo Carlos Santos foi um dos que mais atuou nesse ramo musical (COSTA, 2011).

Todo esse conjunto de conexões faz com que, na década de 1970, os subúrbios da cidade estivessem tomados pelo merengue, pela cúmbia, pelo bolero etc. muito mais do que por gêneros musicais compreendidos como nacionais ou brasileiros. Esse aspecto dava ao Pará uma característica particular no campo da música produzida no Brasil. Fazia com que Belém se convertesse em uma espécie de “Porto Caribe”, termo que ficou imortalizado no título de uma canção de Paulo André Barata e Ruy Barata, gravada nos anos 1990 pela cantora Lucinha Bastos:

Eu sou de um país que se chama Pará,

que tem no Caribe o seu porto de mar,

E sei, pelos discos do velho Cugat,

que io, io num puedo vivir sin baylar…[12]

Quando as gravadoras locais começaram a veicular os artistas paraenses em outros estados na década de 1970, sobretudo no Nordeste, é essa sonoridade de fronteira (Amazônia/Caribe) que apareceria como característica da tradição local.

Um exemplo interessante disso é o caso do artista da cidade de Cametá conhecido por Cupijó. Ele foi responsável por popularizar o gênero musical siriá, que tem por base a música negra de comunidades quilombolas do baixo Rio Tocantins. Na década de 1970, ao mesmo tempo em que ele fazia um imenso sucesso com seus siriás, seus LPs traziam também canções inspiradas em merengues, em mambos, além de sambas “abolerados”. Sobre isso, Cupijó comentou: “desde minha infância ouço músicas do Caribe. Portanto, gravo o que minha alma desde a infância conhece. (…) as estações de rádio do Caribe são muito fortes e muito ouvidas no Tocantins”[13].

Outro caso parecido ocorreu com Vieira, reconhecido como o “Mestre das Guitarradas”, também um artista de uma cidade do interior do Pará, Barcarena. Vieira teve contato com a música na infância por meio do rádio, sobretudo com o samba e o chorinho brasileiro. Depois de formar grupos musicais desses gêneros nos anos 1960, abandonou o bandolim (instrumento geralmente utilizado no choro) e passou a tocar guitarras elétricas, fazendo versões da música caribenha. Surgiria aí uma forma musical dançante na qual o fraseado melódico é formado quase sempre por solos de guitarra. Esse gênero, derivado do merengue e do mambo, ficou conhecido como “lambada” na década de 1970, o qual é atualmente chamado de guitarrada[14]. No circuito da “música povão” paraense (aparelhagens, rádios, gravadoras e conjuntos), as lambadas/guitarradas sempre foram presença constante e enraizadas na cultura local.

Na mentalidade dos artistas e do público paraense, constituiu-se uma persistente presença de um “Caribe imaginário” (COSTA, 2013), que é uma influência real, verificada nas formas musicais locais, mas é também uma ideia genérica, pouco detalhada, de um “outro”, de algo “externo”, “internacional”, mas que foi assimilado e reconstruído dentro da tradição local, conformando-a. A influência caribenha na música paraense mostra várias conexões interessantes entre o complexo cultural popular ameríndio-afro-caboclo, da periferia de Belém, com outras áreas culturais.

Se de um lado essa periferia se conecta com a cultura da Amazônia profunda (quilombola, ameríndia, ribeirinha, comunitária etc.), de outro se conecta com a música dita “caribenha” (a música latina, afro-latina, diaspórica e popular americana). A região onde esses encontros ocorrem é a margem e as “baixadas” de Belém que, como visto, compõem mais que uma mera “margem”, torna-se uma “hipermargem”, pois conecta várias tradições musicais populares de grupos historicamente subalternizados de origens locais, regionais e internacionais.

2.5 URBANIZAÇÃO/MODERNIZAÇÃO DO CARIMBÓ

Do ponto de vista da música popular, a década de 1970 no Pará foi marcada pela expansão do carimbó rumo à moderna indústria cultural. O carimbó que era identificado como uma música folclórica, interiorana e/ou suburbana, passou a ser gravado em LPs e veiculado em rádios e TVs. Artistas como Verequete e Pinduca foram pioneiros em popularizar o carimbó em festas na periferia, mas que depois ocuparam o conjunto do espaço urbano.

Verequete ficou conhecido por liderar a defesa de um carimbó chamado de “autêntico” ou “pau-e-corda”, que deveria ser executado de modo tradicional, ou seja, utilizando-se apenas de instrumentos percussivos vistos como originais, tendo por base a percussão do curimbó (tambor do carimbó) e das maracas. Pinduca, por sua vez, ficou conhecido por defender o carimbó moderno ou elétrico, adaptado à indústria cultural, ao mundo dos discos, de shows e, principalmente, com a utilização de instrumento “modernos” como guitarras, contrabaixos elétricos, baterias e metais. Ele adaptava o carimbó tradicional à orquestração dos conjuntos musicais populares em que tocou.

Enquanto o carimbó se popularizava e se transformava, gerando uma primeira divisão entre tradicionais e modernos, surgiu outro debate na sociedade paraense, tendo por tema a origem racial daquela música. De maneira geral, a disputa girava em torno da maior ou menor influência de índios, caboclos, negros e/ou portugueses no carimbó.

Para alguns, o carimbó era uma música eminentemente negra, fruto do processo de acomodamento das populações africanas que chegavam desde o século XVII. Para outros, o carimbó era um dos elementos culturais representativos da presença indígena na região. O carimbó atual seria herdeiro de um “carimbó primitivo”, presente nas aldeias indígenas amazônicas anterior à chegada de portugueses e africanos[15]. Claro que a presença portuguesa e branca do carimbó ficava por conta de elementos como a língua e instrumentos de sopro ou cordas utilizados. Seja como for, para além do debate, que continua persistindo na vida cultural da região, é inegável que o carimbó, como muitos outros gêneros musicais brasileiros, não poderia receber um título de pureza, já que é fruto de históricos processos de mestiçagem.

Contudo, apesar disso, pode-se considerar que o carimbó é uma das formas de batuque amazônico que expressa fundamentalmente a presença ameríndio-afro-cabocla na região, ou seja, era mais uma das muitas músicas da hipermargem, do complexo cultural popular ameríndio-afro-caboclo, que se consolidou na cultura marginal, subterrânea, popular e que, somente na década de 1970, foi efetivamente incorporado à indústria cultural local, já transformado pelo conjunto de influências musicais daquele contexto.

Essa divisão entre defensores do carimbó “autêntico” contra o carimbó “elétrico”, somado ao tema de sua origem étnico-racial, tornou-se um dos temas de maior importância e longevidade na cultura local. A popularização do carimbó nos anos 1970 contribuiu para um debate que acabaria por levar a sua eleição à condição de música de identidade amazônica. Um marco estrutural da tradição musical da região (COSTA, 2008, 2010).

O caso do carimbó expressa nitidamente a força do complexo cultural popular ameríndio-afro-caboclo. Toda a história da música e cultura local passaria a ser narrada direta ou indiretamente pela força de expressão dessa cultura popular. Mesmo os artistas mais associados à tradição musical nacional – que produziam gêneros brasileiros em Belém (como o samba carioca, a MPB dos anos 1960 a 1980, o “rock nacional” dos anos 1980 e 1990 etc.) –, vez ou outra também teriam que se aproximar das músicas do complexo popular ameríndio-afro-caboclo, flertando, sobretudo, com carimbós, mas também com siriás, toadas de bois-bumbás, merengues, lambadas e guitarradas, bregas e tecnobregas.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste texto, busquei dar uma visão geral do processo de formação das linhagens musicais da música paraense, acompanhando os processos de sedimentação da cultura popular periférica e sua posterior amplificação a partir de sua inserção na indústria do disco, circuitos de aparelhagens, rádios e conjuntos musicais.

Esse processo teve um momento importante na década de 1970, período no qual alguns gêneros musicais locais e outros gêneros externos já estavam consolidados na cultura ameríndio-afro-cabocla periférica de Belém do Pará e estabeleceram várias conexões com a música global a partir da indústria cultural local e nacional.

O carimbó, entre as várias formas musicais citadas, “tradicionais” e/ou “modernizadas”, teve destaque, pois acabou por se constituir, após longos debates públicos e estéticos, como uma música de identidade local/regional, em boa parte nacional, por causa do seu acesso à indústria cultural paraense a partir da década de 1970. Porém, argumentei que, naquela década, associado à especificidade do fenômeno da chamada “modernização” ou “urbanização” do carimbó, esse acontecimento de fato refletia as dinâmicas da força de cultura popular ameríndio-afro-caboclaenraizada na territorialidade e historicidade da hipermargem de Belém. O carimbó, para além do enraizamento, também estabeleceu permanente intercâmbio com as culturas e a músicas do mundo global, modificando-se e reconstruindo-se permanentemente, sem perder seu aspecto de signo identitário.

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SOUZA JÚNIOR, J. A.. Jesuítas, colonos e índios: a disputa pelo controle e exploração do trabalho indígena. In: CHAMBOULEYRON, R.; ALONSO, J. L. R. (orgs). T(r)ópicos de História: gente, espaço e tempo na Amazônia (séculos XVII a XIX). Belém: Ed. Açaí/Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia (UFPA)/Centro de Memória da Amazônia (UFPA), 2010. p. 47-64.

VERGOLINO-HENRY, A.; FIGUEIREDO, A. N. A presença africana na Amazônia Colonial: uma notícia histórica. Belém: Arquivo Público do Pará, 1990.

VERISSIMO, J. 1887. As populações indigenas e mestiças da Amazonia. Revista Trimensal do Instituto Historico e Geographico Brazileiro, Tomo L, Parte Primeira, p. 295-390. Rio de Janeiro: Typographia, Lithographia e Encadernação a vapor de Laemmert & C.


[1]     Áreas alagáveis que sofrem a influência das marés e do rigoroso inverno amazônico.

[2]     Os Cordões de Pássaro ou de Bicho são folguedos populares e apresentam uma espécie de teatro popular, com presença de animais (nem sempre apenas pássaros), fidalgos do século XVII e XVIII, dançarinos e índios. A riqueza das fantasias é uma de suas características. A parte principal da estória é a cena em que se tenta matar, a tiros, o pássaro, que ora é o bicho de estimação da princesa ora é o príncipe encantado que a boa fada traz de volta à vida. Geralmente, uma criança encarna o animal, trazendo-o vivo ou empalhado em uma gaiola, apoiada na cabeça.

[3]     TEIXEIRA, Tó. 40 números de músicas folclóricas escritas não para vender e sim para recordação do passado. Belém, s/d. Pasta Tó Teixeira, Acervo Vicente Salles, Museu da Universidade Federal do Pará, Belém.

[4]     Essa explicação consta em um papel avulso na pasta Tó Teixeira. Possivelmente, uma anotação extra dada por Tó Teixeira ao folclorista paraense Vicente Salles, em suas parcerias em pesquisas sobre o “folclore” e cultura popular do bairro do Umarizal e de Belém, que levaram a publicação de inúmeros livros sobre a história da música no Pará.

[5]     Mas uma vez, recorre-se à página avulsa da pasta Tó Teixeira, na qual Vicente Salles complementa algumas informações que não estão no 40 números de músicas folclóricas escritas não para vender e sim para recordação do passado. Como dito, esses dados extras possivelmente foram recolhidos por Tó Teixeira e passados para o folclorista. Encontrei inúmeras cartas e anotações de Tó Teixeira que tentam responder às perguntas feitas por Vicente Salles. Muitas vezes, as informações eram passadas em documentos separados, em momentos diferentes, já que a coleta destas informações era feita pela memória de Teixeira ou por contatos com pessoas antigas, que ele procurava ou encontrava.

[6]     Documento avulso, Pasta Tó Teixeira, Acervo Vicente Salles, Museu da Universidade Federal do Pará, Belém. O documento registra uma partitura e diz que a informações da coleta do carimbó datam de 1900.

[7]     Mãe Ray, é moradora do bairro da Terra Firme desde que aquelas ruas eram ainda pontes improvisadas de madeira que se equilibravam sobre “igarapés” e alagados. Nesse local, ela assentou sua Casa de Mina há mais de 38 anos e, junto com a manifestação religiosa de matriz africana, ela também passou a organizar todo tipo de atividade cultural. Fundou “quadrilhas juninas” (grupos de danças típicas da chamada “quadra junina” no Brasil), organizou um grupo de dança afro chamado “Guerreiros de Obaluaê” e é muito conhecida por ser “botadora” boi-bumbá.

[8]     ADALCINDA, C. Igarapé das almas. A Semana, Belém, ano 20, n. 1016, 21 jan. 1939.

[9]     Gravasom em todo Brasil. O Sucesso, Belém, n. 5, out. 1982. p. 4.

[10]   BARATA, Paulo André apud LARÊDO, 2003, p. 391. Pará Clube e Assembleia Paraense, citadas pelo músico, eram clubes frequentados por setores da elite paraense, em oposição, neste caso, aos espaços mais heterogêneos e aos “guetos” da Condor.

[11]   Depoimento de Pinduca (Aurino Quirino Gonçalves), Belém, 7 mar. 2008.

[12]   LP Paulo Para Sempre Ruy. Belém: Engeplan, 1990.

[13]   Entrevista a Cupijó no jornal A Província do Pará em 10 de abril de 1976.

[14]   Depoimento de Mestre Vieira (Joaquim de Lima Vieira), Barcarena, 9 dez. 2012. Entrevista realizada pelos professores Dr. José do Espírito Santo Dias Júnior (UFPA) e Dr. Tony Leão da Costa (UEPA).

[15]   Entrevista a Arerê. Carimbó, nem de Curuçá, nem de Marapanim, mas da Amazônia. O Liberal, Belém, 8 set. 1974. Caderno 2, p. 15.

Guerrilha

Primeiro poema e título do livro vindouro, ou póstumo, caso ele não sobreviva até lá!

O primeiro ato da guerrilha é viver!

Viver, manter-se vivo, em tempos extremos, já é em si um ato de coragem,

Um ato de rebeldia,

Um ato de enfrentamento aos maus.

Porém, estarmos vivos não basta,

pois muitos estão mortos sob nossos pés.

Estarmos vivos não basta,

pois os opressores também estão vivos e matando!

Estarmos vivos não nos basta,

se continuamos meros expectadores daquele cortejo triunfal de que já nos disseram velhos camaradas…

Estarmos vivos e atentos aos mortos eis, de fato, o primeiríssimo ato da guerrilha!

Estarmos vivos e atentos aos vivos, eis o seguinte ato!

Estarmos vivos, de olhos arregalados, horrorificados sob o impacto da injustiça, segue sendo nosso ato-de-ver!

Estarmos vivos e alertas, indignados, embebidos na justa ira…

Estarmos vivos e amarmos a vida, a nossa vida, a vida de nossos companheiros e companheiras, de forma honesta e não paternalista…

Não nos coisificarmos, não espetacularizarmos nem a luta, nem a vida, nem a morte…

Seguem sendo nossos atos de guerrilha!

Eis que cada geração em luta, cria e sofre seus atos.

Comove-se ao mover-se e movendo-se comove seus pares e camaradas!

E cada ato, novo ato, velho ato, torna-se vida na luta pela vida e pela justiça; e contra a opressão, mas mais anda pela liberdade e redenção dos justos!

Eis que a queda também é um ato, tal qual é ato o joelho esfolado na queda!

Assim como o ato seguinte, levantar-se, se possível, e seguir fazendo o caminho…

E se morrermos no meio do caminho, entre um ato e outro…

                                                                           Entre uma rebeldia e outra…

                                                                            Entre uma luta libertária e outra…

A morte, quem sabe, seja nosso derradeiro ato…

                                                                                              Inconcluso e infinito!

De ato em ato a guerrilha segue, pois só isso nos resta! E isso, ao mesmo tempo, é pouco e tudo que temos e fazemos!

E eis que cada geração em luta, cria e sofre seus atos.

Comove-se ao mover-se e movendo-se comove seus pares e camaradas!

E cada ato, novo ato, velho ato, torna-se vida na luta pela vida e pela justiça, e contra a opressão, mas mais anda pela liberdade e redenção dos justos e dos oprimidos!

Eis que a queda também é um ato, tal qual é ato o corpo caído, o joelho esfolado, o olho arregalado, a vida carcomida, na queda!

Assim como o ato seguinte, levantar-se, se possível, e seguir fazendo o caminho…

E se morrermos?

Mas…

se morrermos?

Se morrermos?

Que nos vinguem no próximo ato e que cada ato seja um novo ato, que cada ato se faça História!

E que a História, quem sabe, seja nosso derradeiro ato…

                                                                                              Inconcluso e infinito!

Pré-poemas, que talvez sejam poemas (I).

Esse possivelmente é um pré-poema, que talvez já seja até mesmo um poema, ainda não promovido. Na dúvida, ficará aqui como pré-poema. Curtindo todas as dores e delícias de ser o que é (como diria o poeta), ou de não ser o que não é. Se entrar no livro, espero eu que seja um pré-poema feliz. Ou que seja promovido. Enfim, que tenha uma boa vida.


Quando a forma hipertrofia
Encharcando-se volumosa na página
Farta e forte, densa e incontida
Formosa, cheia e descabida
Pode haver esperança demais
Quando o conteúdo quebra os limites da forma
Rompe as cercas do latifúndio do belo
Finca estacas e constrói frases fortes, metas e objetivos
Palavras de ordem e urgentes utopias
Pode ser que haja desesperança demais
E pode ser que haja raiva demais
E a necessidade urgente de destruir e reconstruir coisas
A poesia às vezes precisa do ódio revolucionário
E vice-versa

Carcomida

Poema do livro novo. Em breve nas mais marginais das livrarias... ou carcomido pela crítica roedora dos ratos e baratas. 
Aguardem!

A boca aberta e a colher ameaçadora.

A boca aberta e a farinha, o arroz e o feijão duros, brutos, caros!

A boca aberta e a água suja, mercúrio, bílis, amarga.

A boca aberta e o prato ralo, raso, de marrom transparente, frio e duro.

O olhos rijos e o medo ao lado, em volta, atrás, acima, abaixo, dentro, fora, frio, transparente, onipresente!

Os olhos rijos e o desespero calmo, ciente de que ele mantém o controle.

Os olhos rijos e incrédulos, a realidade crédula e realista.

O corpo imóvel e o mundo dissolvendo, ao lado, abaixo, acima, dentro e fora.

Os ouvidos estourados do grito seco, que agora é mudo, mas ainda fala, mas ainda grita e treme o chão e esmaga o dorso, os ossos e a carne e explode a cabeça.

O nariz seco, empoeirado, sujo, enxofre, fumaça, congestionado, poluído, morto.

A pele pasma, não dói, não arde, esquálida, morta, escama, poeira, pó.

A boca aberta e a farinha, o arroz e o feijão duros, brutos, caros, adentro…

A boca aberta e faminta que come, mas não sente.

A boca aberta que come e grita, mas não fala, não berra, não sente…

A boca aberta é o abismo.

À boca aberta cai o vil alimento, matéria prima, commodities, madeira, ferrovias, portos, ouro, bauxita, soja, gado, laranja, alumínio, enxofre, café, gasolina, petróleo, argamassa, automóveis, rodovias, aeroportos, hidroelétricas, nióbio, motosserras, gás, montanhas derretidas, rios poluídos, cana, borracha, latifúndios, chacinas, camburões, viaturas, favelas, garimpos, milícias, fascistas, empreendedorismos, apps, carvoarias, transmissores e componentes, foguetes…

Todos os atos geram desespero.

E o desespero gera a boca aberta, escancarada, que come… carcomida!

O pastor, o bumbo e o falo triste

Em breve pretendo lançar meu segundo livro de poemas, que ainda não tem nome. Depois de um tempo com este blog sem atividade, retomo-o hoje, já antecipando alguns escritos do futuro livro. Em breve mais novidades. Saravás! 

O bumbo do pastor miserável, de som puído e sórdido,

Ecoa na rua triste e úmida,

De cabeças taciturnas e caídas.

Embala com timbre grave

A gravidade daquelas vidas.

Tirésias do gueto imundo,

Profeta de ratazanas e jijus – Enquanto tamuatás, piramboias e mussuns roçam suas canelas magras!

Na viela torta de chuva desesperançosa,

Meio limbo, quase um inferno morno na terra,

A miséria da desenperança fala línguas estranhas.

Desde as entranhas de homens-medo, homens-falo, homens-broxas, homens-querentes…

Negadores das dores e dos prazeres impronunciáveis,

Até mesmo nas línguas estranhas de um Yahweh qualquer:

– É Satanás!

– É sim!… É Satanás!

Bate o bumbo, dá piruetas, gira, sublima o gozo sórdido e farto, a fratura, a língua seca e trêmula,

deficiente!

– Foi Satanás! Foi… Foi Satanás!

– Satanás está à frente, ao redor, atrás!

[Foi Satanás que nos deu o gozo!]

[E foi Deus que vos deu o medo!]

O bumbo toca, a voz frita, o pulmão retorce, as carnes vibram, os paus ululam, as bucetas cospem, o corpo goza, o medo se afugenta… Deus não viu…

Mas o pastor roto, torto, curvo, de turvo pensar, gozou!

Garantiu mais um dia de sobrevida perante o medo!

O medo…

este sim, onipresente e onisciente

O verdadeiro deus dos miseráveis!

Bar do Chico, do Pedral, na TF…

Chico, o dono do bar: – Fala meu consagrado! Como vai? Não vai nada hoje, não?

Você, caminhando deboisticamente na rua: – Ôpa, como tá? Hoje não. Tô só de passagem hehehe

Chico, o dono do bar: – Sério mesmo? Nem umazinha?… Olha lá!…

Você, já se despedindo e seguindo sua viagem: – Hoje não, companheiro. Fica pra próxima…

Chico, o dono do bar: – Vem cá! Espera ai… [entrando no bar e retornando depois de alguns segundos com uma cerveja na mão…] Toma, pra ti… depois tu me pagas…

Munido da breja estupidamente gelada na mão, você segue seu caminho, confiante na humanidade e certo de que sim!… um dia os humilhados serão exaltados…

[História baseada em fatos reais ocorridos numa esquina qualquer de Belém do Pará, na última quinta-feira]

Do carimbó ao brega

Nos anos 1970, quando o carimbó havia transbordado das margens e acessado a indústria cultural local e em parte a nacional, o gênero tornou-se popular nas festas jovens da época. Do “pau-e-corda” ao carimbó “eletrônico”, de Verequete a Pinduca, tudo rolava nas festas do São Domingos à Assembleia Paraense.

Paralelamente, os “sonoros”, depois conhecidos como “aparelhagens”, que têm sua história remota em 1941 (com as “rádios de subúrbio”), tocavam gêneros “latinos”, sambas abolerados, jovem guarda, “música cafona” (termo comum nos anos 1970) e depois o “brega” (termo que vai substituir o termo “cafona”, nos anos 1980). E as mesmas aparelhagens tocavam sem parar, também, o carimbó.

Nessa época, alguns “conjuntos”, que animavam as festas periféricas, colocam em seu menu: cobertura sonora do evento festivo com “conjunto de carimbó” pau-e-corda e, se o cliente desejasse, com som mecânico.

Alguns reclamavam, outros gostavam desse estilo ou daquele, mas todos os sons vinham da mesma origem: as culturas periféricas de Belém do Pará, como território de incorporação e posterior (re)di-fusão dos vários tipos musicais do “povão” (inclusive do povão latino-americano).

Nós dois casos, carimbó e “música povão” ou “brega”, alguns artistas conseguiram por um tempo acessar a indústria cultural local (circuito de aparelhagens, rádios, TVs e gravadoras, como a Gravasom) e nacional, marcando seus nomes na tradição popular folclorizada ou na tradição popular-povão. Mas muitos outros, a maioria, permaneceram num circuito local e periférico: fazendo carimbós nos terreiros de chão batido ou fazendo a cobertura sonora nas gafieiras da periferia, tocando em barzinhos ou animando festas com músicas da moda do momento (tradição essa que vem dos grupos de “jazes”, passando pelas “bandas de baile”, “conjuntos” até o voz e teclado).

Mestre Vieira, por exemplo, tocou chorinho nos anos 1950, quando era o “Joaquim do Bandolim”, teve aparelhagem nos anos 1970 (aproximadamente) e criou um estilo popular-povão/música de gafieira que mais tarde seria chamado de “guitarrada” (hoje cultuado pelas vanguardas). Mas em sua época esteve quase sempre na margem da indústria cultural nacional, apesar de imerso na média indústria local.

Pinduca, idem: de maraqueiro/ritmista de banguês e conjuntos em Igarapé-Miri à “rei do carimbó” (“moderno”) e produtor musical de inúmeros bregueiros dos anos 1980, na Gravasom.

Verequete fazia samba e todos os gêneros que circulavam nas rádios, discos e “eletricidade”, além do “legítimo carimbó”; assim como o Mestre Cupijó, que se criou ouvindo “mambo” das “rádios cubanas” que chegavam a Cametá, além de ter “eletrificado” e “modernizado” os tambores afroameríndios que conformariam o siriá.

Moral da história: a cultura musical popular e das margens é o caldeirão de onde vem o carimbó, pau-e-corda e o “elétrico”, os sonoros e as aparelhagens (as sound systems que aqui são, talvez, mais antigas que na Jamaica), lambadas, guitarradas e siriás, bregas, tecnobregas e melodys, as pequenas aparelhagens que são transportadas de popopô nos riozinhos da Amazônia até as poucas “grandes aparelhagens”, que constituem apenas uma fração da indústria cultural local.

Por isso, cuidado, pois pode acontecer de você estar tomando uma breja no Ver-O-Peso, dis-traído pelas pulsações da música que o povo cria, e o “controlista” malandramente tocar de Verequete à Vieira, de Solano à Chimbinha, passando pelo Felipe Cordeiro, mandando um “ao por do sol”, um “gererê”, Gaby Amarantos e Dona Onete… e você pode nem perceber que curtiu tudo isso… E que a cerveja estava estupidamente gelada e que, ao final, tudo combinou!