Arte popular “bolsonarista”, entre a “cafonice” e a incompreensão da esquerda

Muita gente se horrorizou ao ver os quadros, objetos, estátuas e esculturas feitos e presenteados ao genocida que está de mudança do Palácio da Alvorada e do Palácio do Planalto (espero que de mudança para o julgamento justo e o cárcere, em breve). São objetos quase sempre com a imagem do próprio Bolsonaro e de sua família.

Em um quadro ele aparece como um salvador montado em um cavalo branco, mais ou menos no estilo do famoso quadro de Henrique Bernardelli sobre o General Deodoro da Fonseca (não sei se foi intencional). Em outros, Bolsonaro aparece com a “caneta Bic”, com a esposa e filha, ou ainda com uma águia lhe acompanhando ao redor etc.

“Show de horrores” e “cafonice”, foi o disse a maioria dos críticos que viram as peças nas fotos que circulam nas redes sociais. Deixo claro que não discurso dessa avaliação geral, o bolsonarismo (como um todo) é um show de horrores, como todos sabemos. Mas quero complexificar aqui umas questões, sem querer ser polêmico nem nada do tipo (se é que é possível escrever nas redes sem acabar assumindo um tom polêmico e de pancadaria – não me agridam, por favor!).

Bom, direto ao tema e sem rodeios:

– Acho que ainda não compreendemos em profundidade a relação do bolsonarismo com os gostos populares, os desejos populares, as angustias populares, as culturas populares e, particularmente, com os modos de vida populares de setores do precariado (esse novo proletariado), os setores populares de fronteira (fronteira agrícola, fronteira do garimpo ilegal, do agro em geral), dos setores populares das áreas milicianas das grandes cidades, do mercado informal, do mercado informal contaminado pelas ideologias populares de empreendedorismo, o culto ao potencial “individual” que ao mesmo tempo se encontra com ideias antigas de salvacionismo de “mitos”, sebastianismos populares, etc.

Ou seja, não entendemos totalmente o bolsonarismo e sua ascensão pois não entendemos totalmente (se é que é possível) o povo e suas metamorfoses recentes.  

Lembremos: mesmo considerando a corrupção e compra de votos direta ou indireta, o projeto neofascista teve quase metade dos votos válidos e está vivíssimo, mesmo tendo um “líder” decadente e incompetente. Ou seja, é um fenômeno popular, enraizado, que pertence às estruturas de sentimento de parte significativa dos setores populares. “Alienação” apenas não dá conta de explicar!

São esses mesmos setores populares que fazem a arte popular em madeira, em pintura, em grafite, quadros com o rosto do facínora moldados com balas de fuzil etc. São peças que retratam Bolsonaro como “realizador”, “salvador”, “chefe de família exemplar”, como “patriota”. É retratado em objetos talhados em bala de fuzil simbolizando uma potência justiceira popular, o linchamento popular que agora está no poder, conta a “corrupção”, contra o “sistema”, contra a “bandidagem”, que vai agir com força e rapidez necessária para salvar o povo e deixá-los livres para empreender etc. Essa é a ideia que muitos quadros expressam.

A fixação na potência das motos, por exemplo, na velocidade, no desprezo às regulações em geral e, particularmente, a regulação do Estado (as leis de trânsito assumem esse papel no fetiche da moto veloz, sem capacetes e sem regras do “politicamente correto”), num cortejos de homens-alfa-motorizados… Nesse “cortejo triunfal” (como diria Walter Benjamin), as famosas motociatas, mesmo os motoboys precarizados, “cidadão falidos”, têm a possibilidade de ter um “igual” dirigindo loucamente, tal como eles mesmo fazem todos os dias em suas necessidades de “corres” pra ganhar a vida. Não à toa Bolsonaro ganhou uma estátua esculpida em madeira de uma moto em tamanha real. A moto é o ganha-pão de parte significativa do precariado urbano, homens, jovens, que precisam ganhar a vida e gostam de velocidade e adrenalina, num mundo cão que os oprime com multas e carros de playboys, violência urbana e trânsito selvagem…

Não é à toa também que um dos discursos “estéticos” e políticos do bolsonarismo foi direcionado contra a Lei Rouanet pois ela simboliza o oposto dessas culturas populares que são chamadas de “cafona”. A lei representou para o “povão” a burocracia da arte, a linguagem que “ninguém entende”, de artistas muito elaborados que, segundo as fake news bolsonaristas, fazem uma arte “libertina”, “contra a família” e ainda ganham milhões e milhões do dinheiro do povo, que financia a lei… Claro que isso é um delírio, disseminado para conquistar corações e mentes, mas funcionou. Ou seja, foi ao encontro de alguma sensibilidade popular pré-existente. Lembram do Gilberto Gil sendo violentamente agredido no Catar por uma cara que gritava “Lei Rouanet” e o chamou de “vagabundo”? Era a concepção estética de um empresário médio (lupemburguesia, talvez) sobre a demonização do que é visto como uma combinação degenerada: a “vagabundagem” mais a “arte de vanguarda”!

Ou seja, a estética bolsonarista soube captar para si parte da energia que emerge da fissura permanentemente existente entre as culturas populares e as culturas vistas como de elite, de vanguarda e cult. Essa tensão cultural faz parte do mesmo mecanismo das tensões de classe em uma sociedade como a nossa. Às vezes a tensão pode migrar à esquerda fazendo das culturas populares uma permanente rebeldia contra a ordem e fazendo as revoluções terem uma acentuada dose de festa popular. Mas às vezes também migra pra direita, fazendo as culturas populares e estéticas se tornarem parte da engrenagem do próprio sistema, mesmo com uma aparência de outsider. Bolsonaro é o próprio outsider que veio pra manter o sistema de acumulação do capital!

Portanto, para finalizar, cabe, muito mais que definir a “arte bolsonarista” como uma degenerescência “cafona”, “brega”, “feia” e “show de horrores”, tentarmos entender as conexões e enraizamentos que essas formas artísticas têm com o mundo popular do novo proletariado (precariado), o popular das áreas de fronteira do capital (garimpo, desmatamento, etc.), a lupemburguesia (pequena, média burguesia urbana do setores milicianos, do transporte clandestino, do comércio popular etc.), as religiosidades populares com seu antigo e/ou renovado sebastianismo, salvacionismo pela obra e acúmulo, os setores do empreendedorismo popular, as culturas populares adeptas da justiça pelo linchamento imediato (sem a burocracia do “sistema”), os setores cristãos punitivista, etc.

No fundo, a crítica mais apresada à arte popular bolsonarista (tudo indica que são artistas populares que presentearam o dito cujo) mostra nossa dificuldade (que já tem algumas décadas) em entendermos as metamorfoses do popular nessa fase do capitalismo periférico. Isso explica o porquê de parte da esquerda ter subestimado a força do lulismo (não do petismo) e, no final, foi este que de fato tornou-se a única força capaz de barrar parcialmente o neofascismo. O lulismo também é sedimentado nas culturas e sensibilidades populares. Explica também a rápida ascensão do neofascismo bolsonarista, que era visto por todos nós como uma piada de “mau gosto” a menos de 6 anos atrás. Vejamos, o “mau gosto”, “cafona”, “tosco”, “popularesco”, oposto ao cult e civilizado, tornou-se realidade e com muito custo estamos tirando o facínora do Palácio do Planalto, mas ainda não o eliminamos da vida social cultural e estética brasileira.

Percebemos, portanto, que as coisas são muito mais complexas. Precisamos estudar muito ainda mas, sobretudo, precisamos que a esquerda se reconectar com o mundo social, cultural, estético e os modos de vida da classe da qual pretende ser “representante”. Categorizar de forma simples e definitiva um setor da arte popular direcionado ao neofascismo como “cafona” ou “crise estética” é um postura muito parecida com a do discurso que define todo eleitor de Bolsonaro como “fascista” ou “gado”. É um reducionismo que não precisamos, que não explica tudo (na verdade, não explica nada) e não ajuda a entender a complexidade do fenômeno.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *