A magnífica máquina de fazer cafuné

I

Minha tese é de que o grande problema da civilização está ligado à passagem, à ultrapassagem melhor dizendo, da barreira civilizatória que chamo de “era do cafuné”.

No início dos tempos, quando as populações humanas eram pequenas e primitivas, mais ou menos na fase em que começávamos a construir os primeiros instrumentos, como o arco, a flecha e os tacapes, e começávamos a domesticação de animais e plantas, neste momento vivíamos a “era do cafuné”.

O cafuné naquela época, e assim o é até os dias de hoje, consistia no carinho voluntário ou, até mesmo, involuntário dado por um indivíduo sobre o corpo de outro indivíduo do grupo. Poderia ser um simples afago, um passar de mãos na cabeça ou até mesmo uma sofisticada catação de piolhos. As pessoas trocavam contato físico, trocavam energia orgônica, se reconheciam enquanto indivíduos de um grupo, manifestavam prazer e – já que o conflito faz parte da existência – descontentamento, através daquele ato corpóreo primordial.

Ocorre que com o desenvolvimento das forças produtivas, com a maior divisão sexual e social do trabalho, os grupos humanos superaram esta fase histórica de quase harmonia e proximidade físico-afetivo-espiritual, que tornava os indivíduos comunidade.

A passagem para a fase seguinte do desenvolvimento humano (o período pós-cafuné) nos levou a uma história bastante conhecida pelos historiadores: o surgimento da propriedade privada, do Estado e das desigualdades sociais, até o aparecimento do capitalismo na sua versão contemporânea.

Trocando em miúdos, o mundo contemporâneo é o mundo do não-cafuné, o mundo do indivíduo fragmentado, atomizado, que não é mais comunidade e não socializa sua força físico-afetivo-espiritual com os outros indivíduos do grupo, a não ser em escala muitíssimo reduzida.

O resultado lógico dessa involução foi a transformação do cafuné em uma atividade privada e vigiada, restrita aos carinhos maternais, paternais e/ou amorosos. O cafuné que temos hoje é na verdade um remanescente de uma fase histórica de plenitude, reduzido à condição de fragmento ou de ruína civilizatória.

II

Certa feita, um cientista pensou na possibilidade de fazer uma máquina diferente de tudo que havia sido inventado antes: a máquina de fazer cafuné.

A palavra cafuné deriva possivelmente de um termo encontrado na região africana onde hoje é Angola: kufundu. Esta palavra significa cravar, enterrar, o que leva a crer que o cafuné sempre consistiu no ato de enterrar os dedos na pelagem, na cabeça, cravá-los entre os cabelos, em movimento de carinho. Esta foi, sem dúvida nenhuma, a mais importante invenção da antiguidade, surgida obviamente no berço da civilização: a África.

O referido cientista, assim, elaborou um projeto de pesquisa arrojado e viajou à África onde fez estudos arqueológicos, históricos e antropológicos sobre o cafuné. Leu antigos manuscritos sobre a existência da energia orgônica ou energia vital e finalmente elaborou uma máquina simples que se utilizava da energia solar associada a esta energia corporal milenar.

A energia orgônica era conhecida desde tempos imemoriais, porém, modernamente, foi mais bem elaborada em termos científicos por Wilhelm Reich, discípulo dissidente de Freud. Para aquele pensador a energia orgônica era a forma mais importante de bioenergia e poderia ser encontrada em todos os seres vivos. Mais tarde, Reich chegaria mesmo a considerar que esta energia existia não só nos seres vivos, mas também na própria atmosfera.

A substância orgônica fluiria por todo o corpo humano, de cima para baixo, pela espinha, mais ou menos da mesma forma como no Yoga se pensa o conceito de prana. Para os adeptos do Yoga o prana circula por caminhos chamados de nadis, sendo os mais importantes o idapingala e o susumna, que estão relacionados com a coluna vertebral, o eixo do corpo. Mesmo sem conhecer tal pensamento Reich chegou a resultados parecidos em sua teoria sobre o orgônio.

É interessante ressaltar que teorias paralelas e independentes, novas e antigas, como a física moderna e o uso da acupuntura acabaram tratando de um conceito de energia parecido com o qual formularia Reich e, por outro lado, aproximaram-se um pouco do que teria sido a função social do cafuné em tempos remotos.

A acupuntura, por exemplo, nada mais é do que o ato de cravar (um outro kufundu) agulhas no corpo, de modo a equilibrar a energia. A física quântica, por sua vez, fala da troca constante de energia entre os corpos e apresenta a matéria tanto como partícula quanto como energia, como ondas. Nesse caso, energias, partículas e ondas participam de um cósmico e permanente processo de trocas, interconexões, intercravações (interkufundus) em todas as dimensões da vida, do mundo subatômico ao universo hiperbólico em movimento, passando pela vida humana.

Baseando-se um pouco em tudo isso, somando-se ainda elementos do espiritismo, Pitágoras e Hipócrates, sumak kawsay das populações andinas originárias etc., a máquina de cafuné teria como função principal restabelecer o contato corpóreo e cósmico entre os seres humanos, a partir do cafuné. Buscava-se restaurar a conexão da energia vital ou orgônica,  reconstituindo o equilíbrio entre o ser social moderno e o elemento físico-afetivo-espiritual perdido na evolução da espécie.

Contudo, para que isso desse certo era necessário que a máquina pudesse imitar condições sócio-cafunísticas parecidas com aquelas encontradas no cafuné propriamente dito, de outrora, o que seria quase impossível num mundo onde as pessoas não paravam nenhum momento suas atividades cotidianas de produção e consumo. A máquina teria que ser prática, leve e acompanhar as pessoas nas suas atividades rotineiras.

Neste sentido, imaginou o cientista que a energia solar, que por sua vez teria também energia orgônica acumulada da atmosfera, transformada em energia mecânica, poderia mover dedos e mãos artificiais, colocadas estrategicamente nas cabeças das pessoas, que ficariam recebendo cafuné enquanto trabalhavam, cominam, dormiam, caminhavam, conversavam, faziam sexo etc.

Inicialmente a máquina foi um sucesso. Dado fatores de herança genética, a cultura moderna ainda não havia excluído a sensação de prazer que o cafuné cria na maioria das pessoas. Logo a invenção se transformou na grande novidade das lojas de departamento em todo o mundo. Em países de línguas e culturas muito diferentes entre si houve uma adesão maciça à novidade.

Por um momento parecia que a humanidade havia alcançado a redenção final. Parecia que havíamos evoluído um degrau importante rumo a uma nova era: a nova civilização do cafuné.

III

Passado o entusiasmo inicial, viu-se, porém, que máquina estava trazendo sérios problemas para a vida das pessoas. Muitos faltavam ao trabalho por causa do sono característico provocado pelo cafuné. A produção das fábricas e da agricultura começava a diminuir e a economia começava a dar sinais de desgaste.

Pouco tempo depois da popularização do uso da máquina de fazer cafuné e da ampliação astronômica dos lucros das empresas que se dedicaram a este ramo de negócio, o PIB global reduziu drasticamente, uma vez que as demais atividades produtivas, de comércio e de especulação financeira quase paralisaram.  

O que não havia percebido o brilhante cientista foi que a energia liberada pela máquina de cafuné, ao mesmo tempo em que restabelecia o equilíbrio existencial sinestésico do toque corpóreo à sensação de prazer corpóreo-metafísico-espiritual perdido à milênios, por outro lado, colocava-se em oposição ao modelo de vida da civilização moderna e capitalista.

Era como se aos poucos as coisas começassem a voltar ao passado. O cafuné funcionava mais ou menos como um relógio que corria para trás, desacelerando o tempo, acomodando as pessoas em prazeres corpóreos-metafísico-existenciais não produtivos e nem consumistas.

E o pior ainda estaria por vir. A máquina de cafuné desencadeou sensações até então ocultas, congeladas no inconsciente mais profundo da mentalidade coletiva. Progressivamente as pessoas passaram a retomar a prática do cafuné sem a mediação da máquina de fazer cafuné e iniciaram uma nova cultura cafunística que ocorria em qualquer lugar e a qualquer momento, nas praças, nas ruas, nos carros, no transporte coletivo, no local de trabalho, além, é claro, das próprias casas.

Outra consequência da ação da máquina sobre as pessoas foi que aos poucos elas começaram a deixar de fazer coisas ditas modernas e atividades produtivas e passaram a realizar atividades vistas como inúteis, tais como: dormir, bocejar, ficar distraído olhando o nada, falar coisas bobas e amorosas, pedir licença, contemplar uma criança correndo, ficar horas esperando uma estrela cadente, dar bom dia, observar a lua, alimentar pombos, contemplar flores etc.

Ocorreu que, após a popularização da máquina de fazer cafuné e com o caos global daí derivado, os governos tentaram de início proibir o uso da máquina, porém em vários lugares do mundo as populações se levantarem agressivamente contra a ordem social vigente.

Movimentos sociais se organizaram de forma massiva. Greves, piquetes, revoltas indígenas, estudantes na rua, guerrilhas, ocorreram por anos seguidos. Parecia que de uma hora para outra tudo que a civilização ocidental havia construído como modelo de sociedade estava em risco apenas por causa de uma máquina. As massas se levantaram em oposição à proibição do uso da “máquina da paz e do amor”, como passou a ser conhecida nos núcleos subversivos e subculturas.

Um resultado lógico de tudo isso foi que a ciência, sempre ela, resolveu dar um jeito no caos que se estabeleceu. Outro cientista foi convocado para criar uma nova máquina, na verdade um dispositivo secreto, que suavizava a liberação da energia orgônica da máquina de fazer cafuné. Este dispositivo, que foi secreta e obrigatoriamente colocado na máquina original ainda em seu processo de fabricação, ficou conhecido pelo nome de “máquina de neutralizar cafuné”, já que recebia cerca de 90% da energia produzida pelo primeiro invento. Neutralizava, portanto, seus efeitos nocivos, sem que as pessoas percebessem ou pudessem reagir.

IV

Com o passar do tempo, as pessoas voltaram às suas atividades normais. Aos poucos as máquinas de fazer cafuné foram sendo esquecidas, devido ao fato de que seu efeito se tornou muito fraco ao ponto de não mais levar ao vício. Os grupos dissidentes que continuaram praticando o cafuné in natura, sem a mediação da máquina, foram perseguidos e presos. Tudo voltou ao normal e a civilização tomou seu caminho rumo ao progresso.

Hoje a máquina de fazer cafuné encontra-se quase que esquecida no hall da fama dos grandes inventos da ciência. Porém, corre à boca miúda que ela é usada ainda por setores marginais da sociedade: por intelectuais desviantes, personalidades transviadas, gurus exóticos, hippies, anarquistas, traficantes e drogados, vegetarianos e veganos, agroecologistas e bioconstrutores, grupos humanos isolados e selvagens, artistas e militantes de esquerda das mais variadas tendências.

Diz-se, inclusive, que muitos dos grandes artistas da modernidade fizeram brilhantes obras de arte sob o efeito do cafuné e que até mesmo algumas autoridades de postura exemplar no mundo da política, das finanças e da indústria, secretamente usam o cafuné como terapia alternativa aos problemas rotineiros do mundo moderno.

Contudo, pelo menos em termos oficiais, a máquina de fazer cafuné, na sua versão original, não mais existe, nem mesmo em museus. Não há mais como reconstruí-la, já que a sua fórmula foi destruída ou, segundo algumas teorias da conspiração, está guardada a sete chaves por pouquíssimas autoridades militares dos países centrais.

E é exatamente por este motivo que o cafuné ocorre ainda de forma muito fragmentada em atividades privadas e em momentos íntimos. Só nestes ambientes que, mesmo com a condenação moral pública e a permanente vigilância das autoridades, o cafuné ainda resiste, residual e marginal. Como se fosse a selvageria latente dos homens e mulheres primitivos que ainda persiste em cada um de nós…

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *