Memórias boêmias do Círio de Nazaré

Até alguns anos atrás eu costumava ir para o circuito profano do Círio de Nazaré, juntamente com um grupo de amigos da universidade, na noite de sábado anterior à grande procissão. Passava a noite perambulando entre a Festa da Chiquita[1] e o Cirial.[2]

Costumava ficar “na República” até quase amanhecer e, lá por volta das 4 da manhã, eu e meus camaradas rumávamos para o Ver-O-Peso, onde encontrávamos milhares de fiéis se colocando ou já colocados na corda da Santa. Estavam sentados no chão, guardando os seus lugares e esperando a corda caminhar para pagarem suas promessas. Esse era o momento maior do sacrifício humano: “ir na corda”.

No caminho, éramos parados por homens do exército, numa verdadeira operação de guerra, que pediam que tirássemos os sapatos já que, de determinado perímetro em diante, sapatos nos pés poderiam machucar os demais promesseiros que estavam descalços. Fazíamos isso. Circulávamos na multidão que se formava e rumávamos para as barraquinhas do “Veropa”.

Lá o rolê recomeçava. Tecnobrega pra cá, brega pra lá, barulho pra todos os lados, fogos constantes, pessoas falando o tempo todo, “cuidado com a carteira!” (dizíamos uns aos outros!). Mais uma “gelada”, mais outra, mais outra, enquanto a multidão se aglomerava na rua à nossa frente. Esperando “a Santa passar”.

O dia amanhecia, o sol aparecia rumando da baia do Guajará em nossa direção e o centro de Belém a essa altura já estava tomado por milhões de pessoas: “rio de gente”, como já disseram tantos poetas.

O Ver-O-Peso fervilhava, pipocava, explodia. Caboclos, negros e indígenas desindianizados por todos os lados; pobres e ricos; turistas, boêmios amanhecidos da Chiquita; promesseiros, vendedores, “malacos”; prostitutas; cheiro de peixe frito no ar; e, a constante ameaça de uma pancadaria…

Cada barraca com o seu som no máximo. Suor, calor e fogos e mais fogos anunciando que a santinha já estava pertinho. Já estava chegando.

Barulho infernal!

Calor infernal!

Mas, eis que a Santa passava na frente das barracas do Ver-O-Peso e, como que por milagre, ao passar lentamente carregada por milhares de pessoas espremidas umas às outras, os sons das barracas eram desligados de acordo com seu caminhar.

Os bêbados por um momento retomavam parte da sobriedade perdida e cambaleantes percebiam que era hora de ficar quietos e calados. “Nazica” também abençoava os boêmios e os “papudinhos”…

Todos olhavam a santinha pequenina passar ao longe, cercada pela cúpula da igreja e ainda pela longa corda, que por sua vez estava rodeada por centenas ou milhares de pessoas comprimidas umas às outras…

Ao passar na nossa frente o tecnobrega da barraca era substituído pelo falar dos devotos, pelos fogos em homenagem à Santa (que na verdade nunca paravam!), pelos sinos que da Sé ainda repicavam e pelo “vós sóis o lírio mimoso…”, cantado em coro na rua por milhares de pessoas.

Em cerca de 10 minutos a Santa passava no trecho de rua que ficava em frente da barraca em que estávamos… e, ao passar, como uma onda organizada, o som das barracas eram religados, um a um, do mais distantes ao mais próximos, seguindo a lógica do afastar-se da berlinda. A territorialidade sonora profana, que fora interrompida pela territorialidade sonora sagrada dos cânticos católicos e falas devotas, voltava a dominar o cenário da feira.

Um dos nossos saia do transe sagrado e de repente gritava: “Ei garçom pega mais uma gelada ai!”.

E o Ver-O-Peso fervilhava, pipocava, explodia novamente.

Caboclos, negros, indígenas desindianizados, pobres, ricos, turistas, boêmios amanhecidos, promesseiros, vendedores, “malacos”, prostitutas, cheiro de peixe frito no ar e a constante ameaça de uma pancadaria… Cada barraca com o seu som no máximo! Suor, calor e fogos e mais fogos anunciando que a santinha estava indo embora, mais ainda estava pertinho…

Em poucos minutos fechávamos o ciclo completo do profano ao sagrado e do sagrado de volta ao profano… A feira toda constituía, ao seu modo, o seu próprio religare: do chão ao céu e, depois, do céu ao chão…

E o Ver-O-Peso fervilhava!

Barulho infernal!

Calor infernal!

– “Ei garçom, pega mais uma gelada ai pra gente!… Até parece que tu é remista, pô!”.

Até o ano que vem!…


[1] No sábado à noite ocorre a Festa da Chiquita, que iniciou na década de 1980, inicialmente como uma festa profana dentro da programação religiosa, sem o apoio da igreja obviamente. Com o passar do tempo foi sendo incorporada ao “movimento gay” e atualmente se afirma como evento de afirmação LGBTQI+. A festa tem a presença de drag queens e a escolha do “Veado de Ouro”. Ocorre ao lado do Theatro da Paz, na Praça da República. Por volta das 3, 4 da manhã faz concorrência com os promesseiros que vão acompanhar o Círio de Nazaré. Segundo o organizador da festa, o velho requeiro paraense Eloi Iglésias, a Festa da Chiquita é tão importante que só nela a Nossa Senhora original se faz presente, nos demais eventos religiosos do Círio ela manda “suas covers”, ou seja: a “santa peregrina”, que é a réplica da original!.

[2] O Cirial é uma festa tradicional do cenário roquista e underground de Belém que ocorre dentro da programação profana do Círio de Nazaré, paralelamente à Festa da Chiquita, também na Praça da República. No evento se apresentam bandas de vários estilos de rock e rap e outras formas de arte “alternativas”. A programação é menos regular que os outros eventos do Círio, tendo alguns anos ocorrido fora do espaço da Praça da República, no centro, onde ocorrem a maior parte dos eventos do Círio.

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