Os intelectuais e as empregadas domésticas

O intelectual acadêmico de modo geral tende a achar que as “coisinhas do dia a dia” são empecilhos para sua produção. No Brasil, em particular, onde há uma radical separação do trabalho manual (inferiorizado) com o trabalho intelectual (superiorizado pela ideologia), a maior parte dos intelectuais acadêmicos medianos está em uma condição socioeconômica, racial e de gênero, que lhe permite “terceirizar” as “coisinhas do dia a dia”: cuidado com a casa, com os filhos, comprar pão, lavar louça. O mesmo no caso de “coisinhas do dia a dia” que não seriam propriamente do cotidiano “do lar”, mas que seriam do cotidiano da “vida pública”: a greve na sua universidade, a greve de ônibus (grosso modo esse intelectual sequer pega ônibus), a organização nos bairros de periferia contra o aumento da conta de luz (normalmente ele não mora na periferia) etc.

Todas essas “coisinhas” tendem a ser terceirizadas pelo intelectual acadêmico brasileiro mediano: sejam as coisinhas do dia a dia “do lar” (que ficam terceirizadas para mulheres/mães/avós ou empregadas domésticas/mulheres/negras/indígenas), sejam as coisinhas da “vida pública” (que ficam terceirizadas ou afastadas do mundo do intelectual que, no máximo, reflete sobre elas mas não se mistura).

Os resultados disso são variados, mas existem dois que são bem curiosos e que quero ressaltar aqui:

1. A completa falta de comunicação e conexão sensível entre a reflexão e a prática do mundo real, com intelectuais que muitas vezes não conseguem (no sentido de não terem habilidade) se comunicar para além do mundo de seus pares.

Claro que a eventual comunicação entre intelectuais e as “pessoas comuns”, por si só já é difícil, talvez, em qualquer lugar e situação. É uma tarefa árdua para qualquer intelectual, até mesmo para os ditos intelectuais “engajados”. Mas é fato que o afastamento do mundo das “coisinhas do cotidiano” deixa a dificuldade maior ainda, uma vez que o conjunto de códigos comunicacionais se cria em mundos quase isolados. O mundo do intelectual não se comunica com o mundo do trabalhador “braçal”: a não ser quando este segundo é um “objeto de estudo” do primeiro.

A proximidade, em si, não resolveria o problema, mas daria ferramentas comunicacionais comuns que poderiam ser usadas com alguma eficiência. Minha fala aqui, bastante emplumada, já mostra um pouco dessa dificuldade, apesar de que é conscientemente uma fala para “os intelectuais acadêmicos”, fazendo uso de sua forma de comunicação, dita, “culta”.

Um exemplo importante dessa desconexão é o fato de o Currículo Lattes ter se tornado um mundo à parte, separado, dos currículos “das pessoas comuns”. As pessoas comuns têm currículo profissional, os intelectuais têm um currículo específico, com regras próprias de uso.

E essas regras são tão complexas que muitos estudantes universitários de origem “comum”, “popular” (vindos do mundo das pessoas comuns), esses que compram pão na padaria e pegam ônibus para ir à universidade, se sentem obrigados a fazerem oficinas, cursos, minicursos etc. de como preencher o temido Currículo Lattes. Isso mostra que as “coisinhas do dia a dia” do intelectual, as suas banalidades, aquilo que ele reclama de ser obrigado a fazer, estão num outro nível existencial: o mundo da técnica, da tecnologia, do texto, da ciência, que é grosso modo diferente do mundo da vida “comum”.

Enquanto o cidadão comum diz “Puxa vida, ainda tenho que desentupir a pia!” ou, pior, “Ainda tenho que conseguir o dinheiro da conta de luz!”; o intelectual acadêmico mediano, diz: “Puxa vida, ainda tenho que colocar aquele artigo sobre a hermenêutica e a descontração do sujeito na época da reprodutividade técnica no Instagram… no Lattes!”.

2. A segunda coisa é o empobrecimento do mundo da reflexão, uma vez que esta já nasce, desde seu início, sem a experiência (ou proximidade com a experiência) da vida vivida pela maior parte das pessoas que são “objetos” de estudo dos intelectuais acadêmicos. E mais, a reflexão nasce no mundo do privilégio, de classe, raça/etnia, gênero e região, dentre outros, se considerarmos que a maioria dos “grandes intelectuais” é homem, branco, classe média/alta etc. e tal.

A maioria dos grandes livros da “humanidade” existe também pelo fato de que o autor teve tempo (“ócio com dignidade”, diriam os romanos) para produzir “intelectualmente”, enquanto outros homens e, sobretudo, mulheres (muitas vezes de grupos sociais, raciais, étnicos e regionais subalternizados) estiveram privados de tempo (e da dignidade). A terceirização do trabalho manual garante a produção do trabalho intelectual de poucos. Isso faz parte de uma economia política do saber (economia em termos “econômicos” mesmo!) muito longa. Isso ocorre em muitos lugares do mundo, mas no Brasil e América Latina ocorre de forma mais aguda.

Creio que aqui, não se trata de uma simples “divisão social do trabalho”, na medida em que ocorrem especializações de trabalhos/funções nas sociedades. Obviamente que isso ocorrer em termos gerais em todo o mundo. Mas no nosso caso específico (Brasil/América Latina) ocorre, concomitante à divisão social do trabalho, uma aguda hierarquização social/racial e de gênero no mundo do trabalho. Em outras sociedades ditas “complexas” não necessariamente a divisão social do trabalho ocorre associada a determinadas hierarquizações do trabalho, intelectual versus manual/doméstico, de forma tão brutal. Ou não há uma hierarquização tão nítida que implica a liberação da obrigação de se fazer “aquilo que todo mundo faz mesmo que não goste”, para aqueles que detém um “status superior”do ponto de vista intelectual.

Em outros lugares do mundo o intelectual joga o seu próprio lixo fora, mesmo que não goste; embala suas próprias compras no supermercado, mesmo que perca o tempo que poderia estar gastando numa tese.  

A questão central não é que os intelectuais, digamos, não devessem achar monótono ou uma perda de tempo lavar louça ou trocar a fralda do próprio filho/filha, a questão é que todo mundo no mundo, as pessoas normais, fazem coisas que não gostam. E o mais importante, sobretudo no caso das sociedades escravistas e hiper hierarquizadas como as latino-americanas, é o fato de que as coisas do cotidiano sejam hierarquizadas, inferiorizadas como coisas domésticas, que alguém vai fazer “no meu lugar”. Ora, não gostar de lavar louça não é necessariamente uma coisa ruim. Mas a questão aqui não é “gostar” ou “não gostar” de fazer algo. A questão é “poder” ou “não poder” fazer algo: relações de poder e privilégio!

Tudo isso que eu estou falando não é novidade nenhuma.

Mas é bom repetir que o sistema produtivo do saber é não apenas empobrecido pela desconexão de experiência e pelo privilégio, mas também contribui para manter o privilégio e as experiências humanas em escala hierárquica, divididas entre coisas úteis e “coisinhas do dia a dia”, inúteis, com às quais o intelectual mediano não se envolve; mas que alguém vai fazer no lugar dele.

No Brasil, por exemplo, o outro lado da moeda de um/uma grande intelectual é a sua empregada doméstica, pobre, afro-brasileira e/ou indígena.

Aqui entre nós uma coisa não existiria sem a outra.

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