Sócrates, os intelectuais, a ideologia e o uberiado.

Toda ideologia, ou hegemonia cultural, deem o nome que quiserem, é um “sistema”, uma “estrutura” em termos marxistas, ou um “tipo ideal” weberiano.

Esse “sistema” nunca existe em forma pura em um único indivíduo, existe sempre fragmentado, híbrido, mais forte em uns, mais fraco em outros… mas, no conjunto é ainda um “sistema” que implica ações coletivas hegemônicas-práxis-tendências históricas. Não é à-toa que o sujeito que agride “sua esposa”, também tem grandes chances de achar que “bandido bom é bandido morto” ou de dizer “que até tem um amigo gay”, mas acha que ele tem que levar uma vida discreta, ficar “no seu devido lugar”.

Os vários comportamentos de um “modo de vida”, de um “sistema ideológico”, de uma “tendência ideológica”, se combinam, aparecem juntos no cotidiano, quando chamados à emergir pelas circunstâncias, mesmo que aparentemente não tenham relação uns com os outros.

Esse mesmo sujeito que agride mulheres, pode se autodefinir como uma “pessoa de bem”, que “ajuda” a mulher em casa (nas atividades vistas como “lugar de mulher”), contribui para o “Criança Esperança” da Rede Globo, mas achava que projetos como o Bolsa Família eram “esmolas à vagabundos que mamavam nas tetas do Estado” e que crianças de rua, em situação de vulnerabilidade, são potenciais bandidos.

Esse sujeito, não se define como uma pessoa racista, trata bem o seu porteiro, o lixeiro, mas não acha estranho que a ideia de “beleza” veiculada na TV, revistas, propagandas em jornais impressos, capas de caixas de remédio, outdoors, etc. seja sempre uma beleza “branca” e raramente apareçam negros, indígenas e seus mestiços em nenhum desses espaços.

Etc., etc., etc.

As ideologias sempre são mais “unidades” que “fragmentação”. Mesmo que nunca sejam um bloco monolítico!

Unidades dificilmente observáveis como tal, pois são unidades vistas pelo “saber” como “normalidades”.

A ideologia dominante é a normalidade (necessariamente dominante).

O saber acadêmico, por sua vez, é feito hegemonicamente por setores intermediários da sociedade, pessoas “especiais-normais”, entendidos e auto reconhecidos como pessoas de status especial, da cultura culta: homens (sobretudo nas ciências duras), héteros, brancos, de classes médias, urbanos, ocidentalizados e familiarizados com uma cultura popular e erudita “internacional”; detentores de uma cultura acadêmica que remonta à “modernidade” ocidental colonizadora; leitores de seus próprios pares em ciclos restritos, autorreferenciados; produtores e consumidores de uma indústria cultural universitária, regulada por sistemas de massificação e uniformização de produtividade acadêmica: ministérios de Educação e Cultura, CNPQs, Lattes, universidades, bancas, agências de fomento, etc.

São pessoas “especiais-normais” que fazem ciência com as ferramentas disponíveis num mundo normatizado pela ideologia. São produtores/reprodutores sofisticados da ideologia, daquilo que para o homem comum é uma “vida prática” irrefletida.

A maior ou menor inserção na normatividade leva a uma maior ou menor conformidade com a mesma normatividade “objeto” do saber. A cultura dos “produtores e produtoras do saber”, como uma cultura de elite (acadêmica) dentro da indústria cultural geral, ocidental, masculina, de normatividade hétero, branca etc., tal como falada acima, coloca apenas uma parte da “normalidade” como padrão de análise.

Essa visão fragmentada, um lugar de produção do saber específico e elitista, leva, muitas vezes, a uma visão fragmentária dos sistemas sociais: o olhar de cima e da parte!

Quando a história se manifesta com radicalidade, em momentos extremos da vida social, momentos de “crises”, tempo de abalos, como os que vivemos a alguns anos, os sistemas ou estruturas mais ou menos vazados e fluídos, tendem a se solidificar, tornam-se mais “puros”, e a fragmentação aparente torna-se uma unidade mais clara. A ideologia torna-se mais ideologizada! A classe mais classificada (tal como a raça, mais racializada; sexualidades divergentes, mais sexualizadas e demarcadas na sua posição subalterna etc.) e o lugar dos desclassificados mais demarcados!

Nesses momentos as ideologias aparecem de maneira mais objetiva, demarcada, na ação dos indivíduos e coletividades: o racista fica mais tranquilo pra externalizar o seu racismo, momento no qual ele mesmo, às vezes, passa a ter consciência do que pensa: pode xingar haitianos imigrantes no Brasil, pode reclamar de ver pessoas pobres/negras/indígenas nos aeroportos, pode dizer que médicos cubanos não tem aparência física de “médicos”, pois são semelhantes a “empregadas domesticas”, etc., etc., etc.

Quando a história se manifesta com radicalidade, em tempo de radicalidade e crise, abre-se uma brecha para que “os produtores e as produtoras” do saber, percebam a normatividade como luta, conflito e hegemonia: imposição de uma parte sobre o todo, de um sistema sobre a fragmentação, que é a constituição de qualquer normatividade/normalidade. É uma chance para que eles e elas (produtores do saber: o sujeito “especial-normal”) também percebam de “onde” falam, “como” falam e com que “ferramentas” constroem “normalmente” o seu saber “normatizado” e “normatizador”.

Neste momento, eventualmente, podem assumir um papel importante de colaboradores de um pensamento antinormativo e radical, contribuinte da mudança radical necessária, um saber parceiro da práxis, dentro de uma práxis anti-ideológica e de mudança social…

Caso contrário, permanecem meros reprodutores inconscientes de sua arte de normatizar sofisticadamente.

Ou, como diria Sócrates para Íon, referindo-se ao fato de ele não ser propriamente um detentor de arte [tékhne] mas muito mais um inspirado, ou melhor: um entusiasmado [em + theos = “em Deus”, ter um deus dentro] por Homero e, por conseguinte, pela Musa:

Sócrates: Assim, se você, possuindo arte (aquilo que eu dizia agora há pouco), depois de me prometer uma demonstração sobre Homero, fica agora me enganando, você faz mal; mas se você não possui arte, e por uma porção divina, estando tomado por Homero e nada sabendo, diz muitas e belas coisas sobre o poeta (conforme eu disse a seu respeito), você não faz nada de mal. Escolha então como você prefere ser considerado por nós: homem malfeitor ou divino…

Íon: Há muita diferença, Sócrates! Pois é muito mais belo ser considerado divino!

Sócrates: Para nós então algo mais belo lhe pertence, Íon: ser divino e de Homero um louvador sem arte!

Nesta história a Musa é o Capitalismo, Homero é a ideologia e Íon é o intelectual “especial-normal” entusiasmado.

Sócrates deveria ser, talvez, o uberiado.

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