Estava surfando na internet, mais precisamente no Facebook, e dei de cara com uma frase do pastor progressista Henrique Vieira:
Esperança. É uma exigência ética diante de uma realidade tão dura. É um impulso para criar o futuro. É uma ação coletiva para mudar a realidade. É um protesto contra toda desesperança. É uma forma de salvar o coração. É um ato de fé, uma decisão política, uma insistência na vida! Seguimos com esperança, fazendo esperança!
Obviamente que concordo totalmente com a tese de Henrique Vieira, sobretudo com as frases:
É um protesto contra toda desesperança…
É um ato de fé, uma decisão política, uma insistência na vida!…
Dai que, coincidentemente, eu estava começando a ler o livro Pedagogia da esperança de Paulo Freire. Estava literalmente nas “Primeiras palavras” da obra e filosofava sobre a tese freireana contida neste livro, mas também em livros anteriores, de que precisamos lutar com esperança e esperar ou esperançar lutando. A tese de que utopia não é devaneio abstrato, mas é combustível para ação na medida em que é ação pensada e pensamento agido e em ação, ou seja: é práxis.
É mais ou menos como se eu dissesse que para mudarmos o mundo precisamos odiar e amar, precisamos estar afetados pelo mundo e afetarmos o mundo com nossa afetação; com nossa dor, com nosso desejo, com nossa luta coletiva pela liberdade, contra a opressão. Utopia, esperança, sonho, assim, são práxis, não são independentes da ação, ao contrário, devem fazer parte da ação.
Para ficar mais claro vou citar aqui, sem buscar aprofundar “intelectualmente” demais a coisa, os fragmentos do texto de Freire, que têm muita relação com o texto de Henrique Vieira acima citado.
– Sobre a esperança como necessidade ontológica e a desesperança como o seu desvio; diz Freire:
(…) A esperança é necessidade ontológica; a desesperança, esperança que, perdendo o endereço, se torna distorção da necessidade ontológica (FREIRE, 2020, p. 14).
– Sobre a esperança ser um elemento enraizado de historicidade, não somente abstração ou teoria pura, ser esperança crítica; diz Freire:
Não sou esperançoso por pura teimosia, mas por imperativo existencial e histórico.
Não quero dizer, porém, que, porque esperançoso, atribuo à minha esperança o poder de transformar a realidade e, assim convencido, parto para o embate sem levar em consideração os dados concretos, materiais, afirmando que minha esperança basta. Minha esperança é necessária, mas não é suficiente. Ela, só, não ganha a luta, mas sem ela a luta fraqueja e titubeia. Precisamos da esperança crítica, como o peixe necessita da água despoluída. (FREIRE, 2020, p. 14 – grifos meus).
(…) O essencial, como digo mais adiante no corpo desta Pedagogia da esperança, é que ela, enquanto necessidade ontológica, precisa de ancorar-se na prática. Enquanto necessidade ontológica, a esperança precisa da prática para tornar-se concretude histórica. É por isso que não há esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se espera na espera pura, que vira, assim, espera vã (FREIRE, 2020, p. 15).
– Sobre a desesperança ser um elemento desmobilizador, paralisador, que leva ao fatalismo/desesperança; diz Freire:
Como programa, a desesperança nos imobiliza e nos faz sucumbir no fatalismo em que não é possível juntar as forças indispensáveis ao embate recriador do mundo (FREIRE, 2020, p. 14).
Sobre a desesperança ser uma distorção da esperança, fruto de uma esperança descuidada, ingênua ou desprovida de concretude/luta concreta. Diz Paulo Freire:
Pensar que a esperança sozinha transforma o mundo e atuar movido por tal ingenuidade é um modo excelente de tombar na desesperança, no pessimismo, no fatalismo.
(…)
Sem um mínimo de esperança não podemos sequer começar o embate, mas, sem o embate, a esperança, como necessidade ontológica, se desarvora, se desendereça e se torna desesperança que, às vezes, se alonga em trágico desespero. Daí a precisão de uma certa educação da esperança. É que ela tem uma tal importância em nossa existência, individual e social, que não devemos experimentá-la de forma errada, deixando que ela resvale para a desesperança e o desespero. Desesperança e desespero, consequência e razão de ser da inação ou do imobilismo (FREIRE, 2020, p. 15 – grifos meus).
Como eu vejo tudo isso:
Freire aqui parece difundir uma práxis revolucionária da esperança, uma vez que ela, a esperança, não está separada da vida prática, da vida vivida e da vida lutada. A esperança é um dos elementos do fazer histórico, é um ato (não só um pensamento), em uma palavra, é uma práxis, ou seja, uma intervenção no mundo. Não se trata de uma espera passiva ou de um voluntarismo ou, ainda, de uma ação impensada. É algo como uma utopia calculada e um cálculo esperançoso/utópico.
É um atrevimento de tentar o novo na medida mesmo em que o novo é inaugurado pela tentativa esperançosa de mudança.
É uma intervenção no mundo e uma convicção de intervir e mudar as coisas.
É uma ação que afeta ao mundo pois está carregada de afeto, está afetada pela dor da opressão, mas também pela expectativa de mudar as coisas, de pôr fim à dor da exploração das pessoas oprimidas e por isso se projeta para uma ação/reflexão/ação de mudança/intervenção efetiva.
Eu poderia até imaginar, a partir de Paulo Freire e de Henrique Vieira, que a esperança não só é uma condição ontológica, mas é também um direito de todos, uma vez que em condições de vida que deveriam ser normais (a ausente de opressão) todas as pessoas, por natureza, têm esperança de algo. A vida em si é uma busca esperançosa das coisas (ou, também, um religare para os religiosos, como Freire e Vieira). Ocorre uma inseparabilidade de busca/ação de buscar/esperança e não só uma espera como espera.
Pode-se dizer que deixamos de ter esperança/busca na medida em que nos desesperamos/não-buscamos [redundância necessária] e nos tornamos fatalistas. Desacreditamos no próprio ser mais natural do humano, com diria Freire.
Não é fácil manter a esperança e a utopia de um mundo melhor quando a vida diária é tão dura e os poderosos/opressores parecem tão fortes. Mas temos o dever político e ético de tentar nos mantermos esperançosos. “Esperançosos críticos“, diria Freire, ou seja: tendo a esperança, a utopia, e a afetação para mudarmos as coisas e lutarmos contra as injustiças; esperança e ação como lados dialéticos e inseparáveis da vida política, de nossa prática.
E agora, mais do que nunca, num momento em que a desesperança e o desespero da maioria da população os brutaliza, os coisifica e os torna intolerante e fundamentalistas, precisamos esperançar mais ainda pois, em caso contrário, daremos a luta por encerrada e vencida. Agora a luta é mais árdua ainda.
Mas a esperança não deve acabar, pois a história não acabou. Não acabou no passado quando foi anunciada muitas vezes, não acabou agora e nem acabará. A esperança é o que fazemos dela, na matemática de nossas derrotas coletivas, de nossas vitórias coletivas, de nossas lutas coletivas.
E isso tudo é o que também costumamos chamar de História!
Esperancemos, camaradas!
Excelente. Muy buen texto. La experanza como una praxis viva…estoy de acuerdo. Es muy bella esta reflexión. Adoramos la pedagogía humanuzadora de Paulo Freire. Una práctica coherente de vida.
Gracias por el comentario, Camila y Teatro Viajero. Bienvenido. Paulo Freire es patrimonio de la humanidad, como lo es la revolución y el pueblo cubano. ¡Saludos!