Cervejas no canal fétido, loja da Havan e a avatarização/coisificação da vida

Há muitas coisas em comum entre a cena, amplamente memificada mas agora esquecida, da população colhendo caixas de cerveja de dentro da lama fétida e poluída de um canal na periferia de Belém e a cena da população aglomerada, se espremendo, um formigueiro humano, para entrar na loja da Havan que estava inaugurando na mesma cidade.

Na primeira cena, o povo já é o próprio alimento da mercadoria que pretende consumir. É o alcoolismo do capitalismo predador que se embebeda do povo e não o contrário. O sujeito imerso na lama, catando cerveja, busca (re)apropriar-se de uma essência que não mais tem pois já foi a tempos embriagado/alienado do seu devir. “Expropriar” cervejas de um caminhão tombado na vala é a ação mais “potente” que a ruína de sua radicalidade como ser humano ainda pode realizar. O Robin Hood bêbado, o humano-ruína, “expropria” o fornecedor de cerveja para não sustentar o dono do boteco da periferia. Seu prêmio é a embriagues, na verdade o sonambulismo, do próximo final de semana e as narrativas sobre o fantástico ato de mergulhar na poluição e na merda da cidade que o periferizou, a cidade que sobre ele ri!

A segunda cena é mais “higienizada”. É a do povo que ainda acredita não estar atolado nos desejos das valas da cidade. Povo que busca outro religare, num período de profunda orfandade. Orfandade que se expressa, dentre outros, no fato de que neste ano, por conta da pandemia, nem mesmo sua Santinha popular poderá sair às ruas para lhe acolher. A redenção, então, é a do Deus-Mercado, sem mediação nenhuma. Ao Mercado se sacrificam amontoados sob sol de Belém do Pará, agarrados uns aos outros em uma “corda” de gentes (um novo religare entre o ser e o consumo), pagadores de promessas que são, desejosos de que a Mercadoria lhes eleve. Seu limite é que o mercado não faz milagre e a dureza da vida mais cedo ou mais tarde chegará com o carnê da televisão comprada para pagamento em 12 parcelas.

E o que há em comum, então, nesses dois casos?

Em comum está a pobreza material e cultural, o embrutecimento das mentalidades, a desagregação das estruturas da vida coletiva e comunitária, a corrupção das sociabilidades populares que normalmente constroem a riqueza da cultura popular, da fala popular, do comunitarismo popular, da religiosidade popular; em resumo: o fetiche da mercadoria, o império do consumo, a busca desespera do embriagar-se para encarar a vida, a socialização por via do mercado, o avatar como modo de vida global, a coisa, a pobreza em todos os níveis materiais e espirituais, a coisificação e a desumanização.

Nos dois casos, a miséria existencial se converte em memes para o consumo de outros embriagados e fetichizados! Tão perdidos, tão carentes de medicalização, tão dependentes da imagem, dependentes da avatarização da vida, memificados e memificadores, desejosos dos likes que os confortam, imersos em melancolia, na depressão, na ansiedade, no pânico e no fetiche. Órfãos também!

Todos estão órfãos.

E o pai, não o padrasto, é o capitalismo: construtor, ao mesmo tempo, de miseráveis e de novos templos (reais e virtuais) de culto à mercadoria.

Em resumo, tristeza e a máxima espoliação do capitalismo sobre a vida humana, é o que define tudo isso!

2 respostas para “Cervejas no canal fétido, loja da Havan e a avatarização/coisificação da vida”

  1. Texto genialmente construído. Admiro a iniciativa e a análise que fizeste destes dois casos. Essa memificação do ato, seja do espólio alcoólico retirado do canal, seja da aglomeração consumidora que adora o Deus Capital na frente da Havan, ambas estão sendo vistas sob a ótica de “são pessoas sem consciência política/social”, fadados à, basicamente, criar conteúdo ao “Deus Social” (que era inexistente, até falarmos da divinificação do Facebook/twitter/outros). Em linhas mais sóbrias, nas redes sociais, demonizam o cidadão de classe média-baixa, com mais força e vontade, do que a demonização do próprio Deus Capital ou Aquele que promove a miséria. Trocam de cadeira, o réu, que devia ser o sistema econômico, com o acusador, que é naturalmente quem sofre pela aglomeração na Havan ou pela necessidade de alteração de consciência para lidar com a vida neste país. Quem acusa, é o causador da miseria e quem responde, é quem sofre por ela. Assim, tem batido o martelo, os juízes da justiça (de rede) social.

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