“Nem todo indígena tá na aldeia, nem todo pardo é preto”: sobre os “extermínios” dos indígenas urbanos e outros apontamentos para a esquerda (Parte I).

Começo esse texto com algumas perguntas:

1. O tema da “luta antirracista” tem incorporado peculiaridades locais e características regionais do Brasil? Pergunto, por exemplo, se o tema da “violência policial” ou do “extermínio da juventude” tem incorporado todos os sujeitos, infelizmente, atingidos por esse fato nas diversas cidades e regiões do Brasil?

2. Existiria, por exemplo, uma juventude indígena nas periferias do Brasil? Por consequência, seria possível falar em um extermínio da juventude (também) indígena nas cidades?

3. Sobre esse assunto, poderíamos perguntar se o que vale para o Rio de Janeiro ou São Paulo ou Porto Alegre também valeria para Manaus, Boa Vista ou para Belém?

4. Para onde foram os indígenas que habitavam o Brasil onde hoje estão os grandes centros urbanos, de norte a sul do país? O extermínio teria sido completo e esses sujeitos estão agora apenas nas aldeias e reservas indígenas (quando conseguem, a muito custo, garantir esses territórios)? Não comporiam, pelo menos em parte, o conjunto da população periférica e popular das cidades brasileiras, mesmo que por vezes mestiçados, de identidade “desindianizada” como “pardos”, “morenos”, “caboclos” etc.?

Admito que essas perguntas podem parecer de imediato bastante obvias e as respostas todo mundo já deveria, em termos genéricos, imaginar. Nestes termos, a maior parte das pessoas “de boa fé”, da esquerda, diria “sim!”, os indígenas estão por aí, inclusive nas cidades e nas periferias e sofrem também pelo racismo estrutural. Mas é necessário que se vá para além da ideia “genérica” e que se nomeie e especifique o fenômeno, pois quase sempre é na generalidade que se esconde a ideologia.

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A pouco tempo atrás, em meio aos debates e protestos mundiais contra a violência policial e o racismo estrutural (derivados do caso do covarde assassinato de George Floyd pela polícia dos EUA), a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) repostou um texto de @abyayalese no qual se afirmava que os povos indígenas também deveriam ser incluídos nos atos e debates antirracistas, uma vez que estes também são vitimados pelo racismo estrutural e violência policial, quando lutam por seus territórios e direitos. Incluindo aí os muitos indivíduos ou coletividades indígenas que vivem nos centros urbanos do Brasil. Dizia o texto:

“Também gostaria de lembrar que grande parte da população indígena vive nas cidades, nas periferias e também são alvo. Na maioria das vezes declarados como pardos, visto as dificuldades de se declarar indígena na cidade. Nem todo indígena tá na aldeia, nem todo pardo é preto e o genocídio e etnocídio vem de todos os lados”.[1]

Esse tema surgiu ainda, direta ou indiretamente, na fala de várias outras lideranças indígenas brasileiras. E de fato acabava sendo uma continuidade da discussão recorrente que afirma que os indígenas estão presentes em todos os espaços sociais, inclusive nas cidades, e que esse fato não faz de um “índio” (morador da cidade) menos indígena por isso, ou pelo menos não deveria fazer: “Eu moro na cidade/ Esta cidade também é nossa aldeia”, já dizia Márcia Kambeba.[2]

Lembro que na época da postagem da APIB alguém dizia, em um comentário no Facebook, que essa questão seria “óbvia” e perguntava “por que é que precisava de ser justificado?!”; dando a entender que a luta antirracista, contra a violência policial, também compreendia ou deveria compreender, automaticamente, a luta indígena.

Seria, realmente, tão óbvia assim essa conexão das lutas?

Vou argumentar aqui que deveria, mas não está sendo.

Vou argumentar que a esquerda em termos gerais (não só a esquerda que trata do tema especificamente racial) tende a não nomear o tema indígena na pauta antirracista especificamente urbana e por isso surgiu a postagem a que me refiro acima, problematizando tal postura.

Mas, antes de qualquer coisa, é fundamental não desconsiderar o contexto específico do caso Floyd, que gerou as movimentações onde a postagem surgiu. Trata-se de um caso objetivo de racismo e violência policial contra uma pessoa negra, um afro-norte-americano, tal como ocorre também cotidianamente no Brasil, sobretudo nas periferias, onde parte significativa da população é afrodescendente. Também é fundamental considerar a luta antirracista negra como uma luta específica, com sua própria história e pautas, uma demanda legítima, que deve ter o apoio de todas as pessoas, sejam elas negras, indígenas ou brancas.

Parto também de uma observação empírica: sempre me pareceu muito curioso que cidades como Belém, pra usar o caso onde vivo, onde muitos militantes carregam consigo as marcas físicas e culturais da descendência indígena (mesmo que como mestiços), a militância de esquerda, em termos gerais, quase não trata do outro lado do racismo em espaço urbano, aquele que recai sobre os indígenas e descendentes. Não estou me referindo aqui aos grupos de indígenas urbanos, auto identificados e com relação comunitária, que discutem sua condição racial e lutam por seus direitos. Refiro-me ao fato de que ao ocorrerem grandes atos/debates antirracistas com a participação do conjunto da esquerda raramente o tema “indígena urbano” é discutido ou colocado como uma das dimensões do racismo. Por exemplo, não existe um debate sobre “descendência”, a não ser em termos muito vagos e às vezes até “folclóricos” no conjunto da esquerda local. Também não se fala sobre a violência racial e policial atingir também os indígenas urbanos ou os descendentes de indígenas na periferia de Belém. Mas acredito que o caso de Belém deve se repetir em muitas cidades do Brasil, em todas as regiões, de norte a sul.

Daí, eu repito uma das perguntas que fiz no início desse texto: indígenas e/ou descendentes não comporiam, pelo menos em parte, o conjunto da população periférica e popular das cidades brasileiras, mesmo que por vezes mestiçados, de identidade “desindianizada” como “pardos”, “morenos”, “caboclos” etc.?

Por conseguinte, existiria violência racial contra esses sujeitos das/nas cidades? Em Belém? Em Manaus? Em Boa Vista? Em Santarém ou Marabá? Por que não perguntar também: Rio de Janeiro? Porto Alegre? São Paulo?

Por que a esquerda não pauta esse tema?

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Feitas as observações acima, gostaria de fazer uma primeira particularização do que pretendo falar nesse texto.

Quando se fala em “indígenas na cidade”, ou “índios citadinos” ou ainda “indígenas urbanos”, quase sempre se imagina os/as indígenas que por algum motivo migram das aldeias ou comunidades “rurais” em direção à cidade em busca de trabalho, educação, direitos etc. Pensa-se nos indígenas que seguem rumo à cidade e que quase sempre sabem que são “indígenas”, mantém ao todo ou em parte seus elementos políticos e linguísticos/culturais, mesmo que tenham vergonha ou medo de exibi-los no cenário urbano, por conta do racismo. Em todo caso, no senso comum (em parte compartilhado pela esquerda), parte-se do princípio de que os indígenas que estão na cidade deslocaram-se em direção à cidade, migraram para a cidade, em algum momento, pois a cidade não seria seu espaço “natural”.[3] E quase sempre a pessoa indígena por supostamente estar “fora do lugar” nas cidades, precisa permanentemente provar que é o que diz ser, inclusive para garantir direitos em contexto institucional.[4]

Ocorre uma permanente “fiscalização” pelos poderes instituídos e pelo senso comum dos sujeitos urbanos sobre a “autenticidade” da indianidade de indígenas vistos como “fora do lugar” que historicamente lhes foi “reservado”.

Indígena urbano? “Não é mais índio!”.

Indígena na universidade, usando jeans ou simplesmente atendendo a um celular? “Menos ainda”, como nos diz Edson Kayapó. [5] Ou como disse Ailton Krenak:

“Ao mesmo tempo em que dentro do Estado brasileiro se concebe a ideia de reservar uma terra para os índios, não se admite a ideia de que eles têm um trânsito entre aquele lugar e o resto do mundo.” [6]

Logo, a luta contra a invisibilidade no caso indígena é uma demanda dupla: a de aparecer/existir e, quando aparecer, ser aceito como diverso, fora de uma estereotipia de “índio genérico” que o coloca, obrigatoriamente, na “tribo” de “arco & flecha”. Ou seja: é uma luta para estar na História. Consequentemente, a presença indígena nas cidades é tanto uma realidade como é uma ausência, na medida em que os indígenas na cidade são vistos como fora do lugar (pois não pertenceriam ao mundo “normal”, “moderno”, “urbano” etc.).

Mas o fato é que por muitos motivos indígenas realmente vão para a cidade: em busca de educação, trabalho, por relações familiares, casamentos etc. No mundo urbano ocupam as universidades, como professores e alunos (hoje cada vez mais), estão no parlamento, são escritores e artistas reconhecidos. Também estão organizados politicamente como “indígenas” e por isso vivem entre a aldeia e a cidade. Em Belém tivemos forte participação de indígenas urbanos nas atividades do Congresso da Cidade (principalmente a partir de 2001) durante o governo de Edmilson Rodrigues (à época no PT); mais tarde surgiu a Associação dos Indígenas da Área Metropolitana de Belém (AIAMB) [7] e hoje existe a Associação Multiétnica Wyka Kwara (AMWK).

Em muitas cidades do Brasil há também aqueles que se encontram em condições de precarização e subcidadania, por exemplo, vendem seu “artesanato” nas praças das cidades e vivem nas periferias. Você vai encontrá-los na Redenção em Porto Alegre ou em praças de Florianópolis. O mesmo para São Paulo e Rio de Janeiro. Em Manaus eles constituem bairros/aldeias/comunidades inteiros.[8] Em Belém do Pará estão presentes indivíduos Juruna, Sateré-Mawé, Gavião, Munduruku, Karipuna, Cambeba, Amanayé, Tembé, Galibi, Apalai etc.

Recentemente em várias cidades da Pan-Amazônia indígenas passaram a ser vistos nos sinais de trânsito. São os Warao, que vindos das fronteiras nacionais da Venezuela, passaram por cidades como Pacaraima e Boa Vista (Roraima), Manaus (Amazonas) e Santarém (Pará), até chegarem a Belém do Pará; posteriormente seguiram para São Luís (Maranhão) e Cuiabá (Mato Grosso), ainda na Amazônia brasileira; tendo chegado ainda ao Rio de Janeiro (RJ), Salvador (Bahia) e Teresina (Piauí). Num dos mais complexos fenômenos de migração ocorridos na América do Sul nos últimos anos.[9]

Só esse contexto já seria suficiente para afirmar que os indígenas estão nas cidades e por sua condição de sujeitos subalternizados pela sociedade nacional (em sua maioria) devem padecer pelo racismo estrutural e uma série de violências daí derivados. Podem estar entre os jovens que são violentados diariamente nas periferias das cidades brasileiras apenas por serem negros e/ou pobres, indígenas e/ou pobres, negros/indígenas e/ou pobres etc.

Assim, a reivindicação de alguns indígenas urbanos de que “nem todo indígena tá na aldeia, nem todo pardo é preto e o genocídio e etnocídio vem de todos os lados”[10] é totalmente legítima e deve servir para todo o Brasil.

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Mas existe uma segunda questão da “presença indígena” nas cidades brasileiras que quero discutir aqui. Pois entendo que ela (essa segunda questão) é ainda menos discutida na pauta geral da esquerda do que o fenômeno de indígenas que vão/migram rumo às cidades.

A questão é que se considerarmos a diversidade das formações históricas regionais do Brasil, encontraremos diferenças e complexidades. As classes populares das cidades do Brasil variam bastante. Cidades como Salvador, por exemplo, são fundamentalmente negras, mas cidades como Manaus, Boa Vista e Belém são fundamentalmente indígenas. E muitas combinações podem existir a partir desses dois troncos basilares (nessas cidades citadas e em tantas outras), que se conectam, por sua vez, em muitos níveis, com os sujeitos populares de outras “etnias/raças”.

Em Boa Vista (RR), por exemplo, temos casos mais complexos da “presença” indígena na cidade. Lá, na percepção dos próprios grupos locais, Macuxi e Wapichana, a sua territorialidade originária objetivamente foi tomada pelo que hoje seria o espaço urbano dessa capital. Logo, para esses sujeitos, nem se trata de eles migrarem para a cidade, na verdade a cidade é que se formou nos seus territórios, onde eles continuam a viver e circular. Assim, estar na cidade é estar na “aldeia”, nos seus territórios originários. Mesmo que para o senso comum da população não-indígena e para as instituições, inclusive aquelas de resguardo dos direitos indígenas, o indígena “na cidade” não é considerado “indígena”, correndo o risco de perder a indianidade e os seus direitos.[11]

E os indígenas de Boa Vista ou, virtualmente, de qualquer outra cidade do Brasil estariam errados em afirmar que foram as cidades que ocuparam suas aldeias e não os indígenas que migram para as cidades?

Sabemos que todas as cidades do Brasil, das pequenas às grandes, participaram da construção ideológica da “identidade nacional” que as define como “brasileiras” (mestiças, “mito das três raças”, etc.) e ocidentais (no sentido em que seriam tributárias da “civilização” originária da Europa). E por isso as populações negras e/ou indígenas são sempre silenciadas em vários níveis nas imagens públicas de cada cidade.

 Quase sempre são os movimentos sociais em geral, e os movimentos populares de base racial em particular, que questionam a visão hegemônica sobre o Brasil e forçam o debate público para reconhecer os sujeitos/sujeitas marginalizados.

Nesse sentido os movimentos sociais são “educadores”, pois questionam criticamente o debate público que se diz “neutro”. Por isso Nilma Lino Gomes caracterizou o movimento negro brasileiro como “movimento negro educador”. [12] Não fosse a pressão deste movimento, muitos negros e negras ainda hoje se autodefiniriam como “pardos” nas estatísticas do IBGE. E isso não ocorreu só no Brasil. Recentemente a Argentina (país da América Latina que menos se vê como negro, ou indígena), por pressão do movimento negro organizado, começou a rever o discurso hegemônico da identidade nacional marcado até então pela invisibilidade da população afrodescendente. [13]

Não ocorreria algo similar com os indígenas urbanos? Amalgamados nas cidades em categorias como “caboclo”, “moreno” e o “pardo” do IBGE, como afirmaram autores como Anahata? [14]

Da mesma forma, graças aos movimentos indígenas e aos intelectuais indígenas (homens e mulheres), que fizeram a mediação entre as “aldeias” e as “cidades”, muito da história da América Latina foi revista, identidades políticas reconfiguradas, legislações constituídas, durante todo o século XX e ainda hoje, desde Jose Mariátegui, até Tarcila Rivera Zea, os Zapatistas e Evo Morales, Silvia Rivera Cusicanqui, Rigoberta Menchú, Raoni Metuktire, Ailton Krenak e Sônia Guajajara etc.[15]

Porém, mesmo com a potência do movimento indígena e sua crítica à narrativa hegemônica da história do Brasil, de suas regiões e de suas cidades, hoje, no momento em que o tema racial é um dos elementos fundamentais do debate público, os sujeitos indígenas parecem terem ficado ainda parcialmente invisibilizados, pelo menos no que diz respeito aos temas políticos da esquerda (em termos gerais) nas partes urbanas da vida nacional.

Logo, é preciso que se considere duas questões:

1. A primeira é o fato já falado aqui, da presença indígena nas cidades no sentido em que estes foram/vão para a cidade e nela permaneceram definitiva ou temporariamente.

2. Outra questão é a necessidade de reconhecermos que muitos moradores populares da cidade, pessoas urbanas, periféricas, nascidas nas cidades e que têm famílias que vivem nas cidades, às vezes a muitas gerações, são também descendentes de indígenas (quando não são indígenas “propriamente ditos”), quase sempre desindianizados, vistos como “caboclos/caboclas”, “caiçaras”, “pardos/pardas”, “morenos/morenas”, “caipiras”, etc. Ou aqueles milhões de indivíduos indígenas aqui presentes no início do processo de conquista/colonização teriam simplesmente desaparecido biológica e culturalmente do que hoje são os centros urbanos?

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Em cidades do Norte do Brasil, mas creio que também em muitas outras cidades de todo o Brasil, os fenótipos ameríndios são facilmente identificáveis, sobretudo nas periferias, mesmo que mestiçados com brancos, negros, em uma infinita possibilidade de variações. Nas periferias das cidades do Norte do Brasil não é incomum vermos pessoas de cabelo preto e liso, olhos amendoados, pele escura/avermelhada, cara redonda, “nariz de taboca” (como se costuma dizer nos interiores da Amazônia), de tronco largo e perna curta (aquilo que no interior do Pará é chamado de “corpo de apanhador de açaí”). Pessoas que mantêm ao todo ou fragmentariamente elementos cosmológicos ameríndios, a pajelança “cabocla”, praticam medicina popular originária, mantêm os hábitos alimentares da “civilização da mandioca”, linguagem “cabocla” anasalada e têm origem familiar “interiorana” e ribeirinha etc.

Logo, as cidades são lugares (também) indígenas não só porque os indígenas migram rumo à cidade (como se as cidades do Brasil não fossem também suas aldeias, com o são, também, quilombos) mas porque historicamente todo o Brasil foi arguido sobre as aldeias indígenas, inclusive onde hoje temos grandes cidades. E os sujeitos indígenas e seus descendentes são, portanto, parte da totalidade da história do Brasil, do passado e do presente, “rural” e “urbano”, em todas as regiões, particularmente, mas não exclusivamente, no Norte do Brasil. Discutir o racismo e o extermínio da juventude no Rio de Janeiro, certamente é discutir a questão negra, fundamentalmente, mas discutir o mesmo tema em Manaus, Belém, Boa Vista, Marabá, Santarém (no Rio de Janeiro, São Paulo, não?), sem que se pronuncie a presença indígena ou a descendência indígena, deixa uma marca de silêncio difícil de acolher.

Obviamente a presença “biológica” verificável no fenótipo é importante não em si mesma, uma vez que se sabe que esse não é o elemento que determina em última instância as relações sociais e históricas racializadas (o racismo é um fenômeno político e histórico não exclusivamente “biológico”),[16] mas não deixa de ser emblemático como essa “presença” fenotípica é tão pouco pronunciada pelo conjunto da esquerda no que diz respeito ao tema do racismo e violência, extermínio da juventude, etc. em muitas cidades brasileiras, tais como Belém do Pará.

Para além do fenótipo, mas não sem ele (pois a polícia sempre sabe quem é o “não-branco”!), o mais importante é o fato histórico de que os heterogêneos grupos indígenas do território que hoje chamamos de Brasil, fizeram parte de uma longa história de escravização, extermínio e de epistemicídio e essa história os colocas na condição de povos marginalizados no passado e ainda hoje na história do Brasil. Mas os indígenas também resistiram e resistem até hoje. Acreditar que eles não estão presentes nas cidades brasileiras, mesmo que mestiçados e em boa parte “desindianizados” ou como descendentes, seria o mesmo que aceitar que a história da colonização e massacre foi completa e vitoriosa. Nesse sentido concordo plenamente com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, quando diz:

“Não é possível fazer todos os brasileiros deixarem de ser índios completamente. Por mais bem sucedido que tenha sido ou esteja sendo o processo de desindianização levado a cabo pela catequização, pela missionarização, pela modernização, pela cidadanização, não dá para zerar a história e suprimir toda a memória, porque os coletivos humanos existem crucial e eminentemente no momento de sua reprodução, na passagem intergeracional daquele modo relacional que ‘é’ o coletivo, e a menos que essas comunidades sejam fisicamente exterminadas, expatriadas, deportadas, é muito difícil destruí-las totalmente”. [17]

*****

Desta forma, parece necessário a revisão do debate racial, para que indígenas e/ou descendentes urbanos sejam pautados, pronunciados, pelo conjunto da esquerda na luta antirracista nas cidades. É obvio que o movimento negro tem a responsabilidade de ressaltar o elemento negro dentro da luta antirracista e a toda a esquerda (em termos gerais) cabe apoiar essa posição. Não poderia existir nenhuma margem para dúvida sobre esse ponto!

Assim como, na medida em que o movimento indígena (representado no caso que estou tratando aqui pela postagem da APIB), se manifesta buscando ampliar o tema, incluindo os indígenas urbanos, a esquerda como um todo deveria também dar ouvidos a isso. Não houvesse a necessidade de se especificar a questão e de se pronunciar a especificidade, possivelmente o texto de @abyayalese repostado pela APIB não teria nem surgido. Se surgiu é porque havia um personagem ausente onde não deveria estar.

Por isso parece importante que, dentre outras coisas, as especificidades de muitas cidades do Brasil sejam pronunciadas, sobretudo no debate público do conjunto das reflexões críticas de esquerda. O Brasil é muito grande para ser caracterizado unicamente pela reflexão da intelligentsia sudestina e da intelligentsia da esquerda sudestina, por exemplo.

A historicidade do Norte do Brasil, antigo Grão-Pará, pode contribuir com esse tema. E seria bom que pudesse dar base para revisões da esquerda em outras regiões do Brasil, onde talvez os agrupamentos indígenas e descendentes ainda se encontrem invisibilizados em meio à “caboclos/caboclas”, “caiçaras”, “pardos/pardas” e “caipiras” urbanos. Invisibilizados muito mais do ponto de vista ideológico do que propriamente “inexistentes”, inclusive nos centros urbanos onde o IBGE diz quase não existirem indígenas e descendentes.

Nos textos seguintes vou partir do caso de Belém do Pará (fazendo relações com outros espaços, na medida do possível) para tentar ampliar esses argumentos acima expostos.

Por último, deixo demarcado que não tenho relação formal com movimentos indígenas, apesar de que como professor, tenho algum contato com amigos/amigas alunos e professores indígenas de Santarém e de Belém. Portanto, não tenho nenhuma pretensão de falar por qualquer grupo (nem poderia mesmo que quisesse) mas posso falar para o conjunto da esquerda, particularmente a “urbana”. Apenas para demarcar meu espaço de reflexão, falo como sujeito urbano de esquerda, que não deixa de fazer parte, mesmo que de forma distante, da condição de população mestiçada pela história de violência por qual passou o Brasil e a Pan-Amazônia, história essa que continua até hoje. Falo a partir de Belém do Pará, antiga Mairi, terra de Guaimiaba e terra da Cabanagem, a maior revolta popular da história do Brasil, que foi levada a cabo tanto por indígenas, quanto por negros, populares e desvalidos de toda sorte…


[1] APIB. “Por que devem nos inserir na pauta antirracista?” (#Repost @abyayalese). 01 Jul. 2020. Facebook: APIB Oficial. Disponível em: https://www.facebook.com/apiboficial/photos/a.1851616878441806/2621268118143341

[2] KAMBEBA, Márcia. Ay kakuyri tama. 5 poemas de Márcia Wayna Kambeba. Livro & Café. 2020. Disponível em: https://livroecafe.com/2020/07/15/5-poemas-de-marcia-wayna-kambeba/

[3] Talvez isso explique o porquê de não haver ainda na literatura especializada “um conceito apropriado para o fenômeno dos índios que residem nas cidades, pois este ainda continua sendo buscado pelos pesquisadores”, como diz a antropóloga Laura Ximenes Ponte: PONTE, Laura Arlene Saré Ximenes. A população indígena da cidade de Belém, Pará: alguns modos de sociabilidade. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 4, n. 2, p. 261-275, maio-ago. 2009. p. 263.

[4] Sobre isso, para o caso dos indígenas que estão em Belém do Pará, afirma Laura Ximenes Ponte: “Os indígenas que estão em Belém procuram firmar a sua condição de índios por meio da Associação criada e de outros mecanismos institucionais, pois a FUNAI exigiu a constituição de uma organização coletiva para que possam ser reconhecidos como índios citadinos, mas, independentemente disso, ressalta-se que a manifestação da identidade indígena prescinde do reconhecimento institucional. Para tais indígenas, é mediante o reconhecimento pelo órgão protecionista que obterão os mesmos direitos que os índios aldeados já possuem”; Ibidem, p. 269. Para caso parecido em Boa Vista (RR), ver: MELO, Luciana Marinho de. Deslocamentos Macuxi e Wapichana em Boa Vista – Roraima: perspectivas a partir da ancestralidade. Textos e Debates, Boa Vista, n. 32, p. 163-174, jan.-jun. 2019.

[5] Sobre indígena de celular “não parecer indígena”, ver:  KAYAPÓ, Edson. Edson Kayapó explicando o que ser indígena no século 21. You Tube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Q5iajNT3XgE

[6] KRENAK, Ailton. A Potência do Sujeito Coletivo (Parte II). Racismo Ambiental. 2018. Disponível em: https://racismoambiental.net.br/2018/06/02/ailton-krenak-a-potencia-do-sujeito-coletivo-parte-ii/

[7] Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia. Indígenas na cidade de Belém. Associação dos Indígenas da Área Metropolitana de Belém (AIAMB) (Fascículo 1). Disponível em: http://novacartografiasocial.com.br/download/01-indigenas-na-cidade-de-belem/

[8] Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia. Indígenas na Cidade de Manaus: Os Satere-mawé no Bairro Redenção (Fascículo 17). Disponível em: http://novacartografiasocial.com.br/download/17-indigenas-na-cidade-de-manaus-os-satere-mawe-no-bairro-redencao/

[9] A complexidade do processo migratório do Warao é quase sempre ideologizada no discurso midiático e imperialista que explica tudo pela tese da “crise humanitária” na Venezuelana. Para uma visão mais crítica desse fenômeno ver, dentre outros:  MARIN, Rosa Elizabeth Acevedo Marin e FERREIRA JÚNIOR, Amarildo. Migrantes, “refugiados venezuelanos”: conflitos e políticas de estado. In: Tiago Siqueira Reis et al. Coleção história do tempo presente: volume II. Boa Vista: Editora da UFRR, 2020. p. 224-252.

[10] Citando mais uma vez: APIB. “Por que devem nos inserir na pauta antirracista?” (#Repost @abyayalese). 01 Jul. 2020. Facebook: APIB Oficial. Disponível em: https://www.facebook.com/apiboficial/photos/a.1851616878441806/2621268118143341

[11] Sobre essa questão ver: MELO, 2019, op. cit.

[12] GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador. Petrópolis: Vozes, 2017.

[13] FRIGERIO, Alejandro Frigerio, LAMBORGHINI, Eva & MAFFIA, Marta. “Afrodescendientes y Africanos em Argentina”. Aportes para el Desarrollo Humano en Argentina 5. PNUD, 2011.

[14] Argumentou antes de mim, neste sentido Anahata, referindo-se aos “pardos”: ANAHATA. “A complexidade do “pardo” e o não-lugar indígena”. Medium (2019). Disponível em: https://medium.com/@desabafos/a-complexidade-do-pardo-e-o-n%C3%A3o-lugar-ind%C3%ADgena-a8a1e172e2b0

[15] Alguns autores que discutem o tema:

MUNDURUKU, Daniel. “Nós, indígenas, somos aqueles por quem esperamos”. Pernambuco: suplemento cultural do Diário Oficial do Estado. Disponível em: https://www.suplementopernambuco.com.br/artigos/2133-n%C3%B3s,-ind%C3%ADgenas,-somos-aqueles-por-quem-esperamos.html#:~:text=Os%20direitos%20ind%C3%ADgenas%20foram%20uma,um%20benef%C3%ADcio%20a%20n%C3%B3s%20oferecido.&text=Como%20diziam%20os%20primeiros%20mentores,Somos%20aqueles%20por%20quem%20esperamos.

ZEA, Tarcila Rivera. “Mujeres indígenas americanas luchando por SUS derechos”. In Liliana Suárez y Rosalva Aída Hernández (editoras). Descolonizandoel feminismo. Teorías y prácticas desde los márgenes. Editorial Cátedra; Madrid, España, 2008.

Mariátegui, José Carlos. Setes ensaios de interpretação da realidade peruana. São Paulo: Expressão Popular/CLACSO, 2008.

Burgos-Debray, Elizabeth y Menchú, Rigoberta. Me llamo Rigoberta Menchú e así me nació la consciencia. La Habana: Casa de las Américas, 1991.

CUSICANQUI, Silvia Rivera. Oprimidos pero no vencidos. La Paz: La mirada selvaje. 2010.

SILVA, Claudia Zapata. Intelectuais indígenas en Ecuador, Bolivia y Chile: Diferencia, colonialismo y anticolonialismo. La Habana: Casa de las Americas, 2015.

[16] Para um debate mais amplo sobre “raça” e “racismo” como fenômenos políticos, históricos e sociais (e não exclusivamente biológico), ver: Munanga, K. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: SEMINÁRIO NACIONAL RELAÇOES RACIAIS E EDUCAÇÃO-PENESB. Rio de Janeiro, 2003. Anais… Rio de Janeiro, 2003. Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf ; Gomes, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no brasil: uma breve discussão. Geledés. Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2017/03/Alguns-termos-e-conceitos-presentes-no-debate-sobre-Rela%C3%A7%C3%B5es-Raciais-no-Brasil-uma-breve-discuss%C3%A3o.pdf Acesso em: 02 out. 2017.

[17] VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é”. Instituto socioambiental. 2006. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/No_Brasil_todo_mundo_%C3%A9_%C3%ADndio.pdf

Uma resposta para ““Nem todo indígena tá na aldeia, nem todo pardo é preto”: sobre os “extermínios” dos indígenas urbanos e outros apontamentos para a esquerda (Parte I).”

  1. Excelente texto. Apresenta questionamentos excelentes sobre a necessidade da esquerda articular, em suas pautas políticas, as singularidades e rugosidades locais do Brasil, criando uma articulação muito mais plural e forte.

    É incrível como a percepção hegemônica brasileira sobre os indígenas ainda seja um conjunto de idealizações românticas. Não saímos das páginas de José de Alencar…

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